Semelhanças entre o terrorismo anarquista grego e a ameaça de criminalização dos movimentos sociais brasileiros
Comunicação apresentada em 05 de junho de 2019, no “VII
Congresso Nacional do PPG-Letras e XX Seminário de Estudos Literários: Políticas
da literatura”, que neste ano comemorou os 40 anos do Programa de Pós-Graduação
em Letras da UNESP, Câmpus São José do Rio Preto.
Nicolas Pelicioni de Oliveira:
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, Câmpus de São
José do Rio Preto, na linha de pesquisa “Perspectivas Teóricas no Estudo da
Literatura”, com o projeto “A
construção do mito em Katerina Gógou: a biografia como elemento de interferência na
recepção da obra literária”
Comunicação
Com o projeto “A construção do
mito em Katerina Gógou: a biografia como elemento de interferência na recepção
da obra literária” pretendo mostrar como o autor empírico pode interferir no
entendimento que se tem de sua obra ao ficcionalizar informações de sua história
pessoal.
A peculiaridade de Katerina Gógou,
no que diz respeito a essa ficcionalização, é sua proximidade e até mesmo
militância junto a grupos de extrema esquerda. São grupos anarquistas, mais de
um, e, o mais famoso talvez tenha sido o “Organização Revolucionária 17 de Novembro”
(Επαναστατική Οργάνωση 17 Νοέμβρη). Como
de tempos em tempos o grupo muda de nome, atualmente é conhecido como “Luta
revolucionária” (Επαναστατικός Αγώνας). Essa
militância é mencionada insistentemente na obra poética da autora.
Recentemente, em janeiro de 2017,
aconteceu a prisão de uma das lideranças do grupo “Luta revolucionária”,
Panagiota Roupa, conhecida como Póla. A prisão dessa líder teve repercussão
internacional, sendo noticiada, por exemplo, pelo jornal norte-americano The New York Times com a manchete “A mais procurada terrorista
grega é presa nos subúrbios de Atenas” (Greece’s
Most-Wanted Terrorist Is Arrested in Athens Suburb, 05.jan.2017). De fato,
o termo “terrorista” é também encontrado na poesia de Katerina Gógou; contudo, o
termo “terrorista” parece merecer nova interpretação. A exemplo da proposta de
lei sugerida no Brasil pelo então candidato à presidência, Jair Bolsonaro (“Proposta
de Bolsonaro, votação da ampliação da lei antiterrorismo é adiada no Senado”, Estadão, 31.out.2018), que poderia criminalizar movimentos sociais,
abre uma série de possibilidades interpretativas a respeito do que terá sido o “terrorismo”
em relação a Katerina Gógou.
Observo que esse grupo anarquista, “Luta revolucionária”, está de fato envolvido em conflitos com a
polícia e realmente pratica atos de vandalismo. É muito provável que tenha sido
ação desse grupo a invasão e pichação da embaixada brasileira em Atenas,
no dia 20 de fevereiro de 2019, em protesto contra a postura machista,
homofóbica e racista do presidente Jair Bolsonaro, como afirma o jornal
Cruzeiro do Sul, do dia 25 de maio de 2019. Esse tipo de ação assemelha-se às
praticadas por Katerina Gógou. Quanto à acusação de terrorismo, a poeta
manifesta-se no livro O mês das uvas
geladas (1988) nos seguintes termos:
Terrorismo: Domínio por meio daviolência. Terror.E terrorista quer dizer o quê?Não quero a resposta dos que o inventaram.Peço a resposta dos sem fôlego.
A persona poética não se importa com os inventores da palavra “terrorismo”,
que são aqueles que a acusam, mas com aqueles que se mobilizaram por não terem
opção ou por já estarem “sem fôlego”. Nesse caso, os terroristas são os que
sofrem algum tipo de opressão social.
É muito significativa essa
mudança do termo “manifestantes” para “terroristas”, pois as mudanças quanto ao
entendimento jurídico que se passará a fazer de grupos constituídos por
minorias sociais pode não apenas intensificar a opressão como também justificar
o uso de violência. Vale mencionar que o terrorismo atual passou a ser
entendido como muito mais belicoso após o ataque ao World Trade Center, nos Estados Unidos. Ainda no governo
progressista de Barack Obama, o terrorista Osama Bin Laden pôde ser sumariamente
executado numa ação criticada dentro e fora dos Estados Unidos. Apesar da
brutalidade do assassinato, o jornalista Clarke escreveu no jornal The New York Times que,
[o]s Estados Unidos precisavam eliminar Osama Bin Laden para
satisfazer um clamor por justiça e, em menor medida, encerrar o mito de sua
invencibilidade. Mas jogar o corpo de Bin Laden no mar não encerra a ameaça
terrorista, tampouco acaba com a motivação dos apoiadores do Al Qaeda (02.maio.2011).
O ataque terrorista do dia 11 de setembro
de 2001 fez despertar o que há de pior na belicosidade dos Estados Unidos e,
mais do que isso, parece ter autorizado toda uma prática de tortura e execuções
que, aparentemente, vinham sendo abandonadas. Dado o caráter hegemônico da
economia norte-americana, as práticas que lá são produzidas acabam por
influenciar práticas ao redor do mundo. Muito provavelmente, em seus dias, Katerina
Gógou, como terrorista, não correria os mesmos riscos daqueles que são acusados
de terrorismo depois do ano de 2001.
A política armamentista do
governo Bolsonaro, que, durante a campanha, demonstrava ser favorável à
execução sumária, como atestam um grande número de entrevistas com o então
candidato à presidência; agora, mesmo antes de ter implantado os seus projetos
— dentre eles é exemplo a lei anticrime proposta pelo ministro da Justiça e
Segurança Pública Sérgio Moro —, a intenção já faz aumentar não só os casos de
agressividade como também os números da violência policial, como atesta o
levantamento do jornalista Alfredo Henrique para a Folha de S. Paulo. Segundo o
jornalista, as mortes provocadas por policiais em serviço foram 48% maior no
mês de março de 2019, que somam 64 suspeitos mortos, em relação ao mesmo mês do
ano anterior, 43 mortos.
No dia 24 de fevereiro de 2019,
Guilherme Boulos, professor, coordenador do Movimento Trabalhadores Sem Teto
(MTST) e da Frente Povo Sem Medo, que foi candidato à Presidência da República
pelo PSOL em 2018, denunciou por meio de redes sociais a agressão e a ameaça de
morte que sofreu o líder do MTST Goiás, que, ao perguntar ao policial se havia
um mandato teve como resposta a exibição de um fuzil e a ameaça: “Aqui está o
meu mandato. Fala alguma coisa de novo”. Como explica Boulos:
Não é a primeira ameaça que sofremos, mas não tenho dúvidas
de que a postura e os atos do presidente Jair Bolsonaro, todos no sentido de
criminalizar os movimentos sociais, são lidos como uma carta branca para a
truculência do Estado (24.fev.2019)
Em procedimento que faz lembrar
Manuel Bandeira em “Poema tirado de uma notícia de jornal”, Katerina Gógou
registra, sob a interrogação “Mas não há Estado?”, que é um de seus poucos
poemas que recebem título, a invasão de um domicílio. No poema seguinte, sem
título, ambos do livro Repatriação,
publicado postumamente (2004), registra a ação policial que resultou na morte
do adolescente Michael Kaltézas (1970-1985), entre outros três manifestantes
adultos.
MAS NÃO HÁ ESTADO? A Tribuna de Domingo 11.9.1978 REVISTA DO DOMICÍLIO PARA INVESTIGAÇÃO E DETENÇÃO, INSPEÇÃO E
CONFISCO O título anuncia um final previsível. EM ATENAS, HOJE, 11º DIA DO MÊS DE JULHO DO ANO DE 1978,
TERÇA-FEIRA, ÀS 4h que eu deite um cobertor sobre mim e em toda parte, nas
janelas. Um que pernoita é presa de seus vizinhos traíras. Um poeta que escreve
é uma criança muito muito pequena, tem febre durante a noite. Age e vive
automaticamente, é ignorante da lógica do perigo. Imagina o seu próprio
combatente como acusador das injustiças cometidas por todo lado. Por isso sente
frio. VIEMOS PARA O CUMPRIMENTO DA REVISTA DO DOMICÍLIO E CAPTURA
DO PROCURADO, COM ESCOLTA DE FORÇA POLICIAL, TENDO INFORMAÇÕES SEGURAS DE QUE O
PROCURADO ESCONDE-SE EM SUA RESIDÊNCIA. ENTRAMOS NO PRÉDIO COM USO DAS CHAVES.
OS HOMENS DAS FORÇAS ARMADAS TOMARAM O CONDOMÍNIO PELOS DOIS LADOS DA
ESCADARIA…
Os elementos narrados em primeira
pessoa na obra poética de Katerina Gógou estão próximos de sua história
pessoal, contudo, ela é muito consciente de não estar escrevendo uma biografia
e, muito sem cerimônia, a persona
poética que fala leva o leitor a enganos. No poema que se segue ao “Mas não há
estado?” são apresentados nominalmente as vítimas de um ataque policial; a
saber: Kassímis, Tsirónis, Tsoutsouvís, Kaltézas, Prékas. Informações como
essas, insistentemente colocadas em literatura, prestam-se, por um lado, a
induzir o leitor a uma leitura biografista; por outro, de fato a registrar um
momento histórico.
Para encerrar esta comunicação,
lembro que, no Brasil, estão entre os acontecimentos brutais recentes a comemoração
que o governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), fez do
assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Esse ato de afronta coloca as
forças institucionais em estado de guerra, aparentemente, contra seus próprios
cidadãos. Por vezes, é a arte que faz a denúncia das atrocidades de forma mais
contundente. Por exemplo, em situação análoga à de Katerina Gógou, o grupo de
RAP Racionais MC’s denunciou o massacre do Carandiru, em 1992, apontando
nominalmente o responsável:
Ratatatá, Fleury e sua gangueVão nadar numa piscina de sangueMas quem vai acreditar no meu depoimento?Dia 3 de outubro, diário de um detento(JOCENIR; BROWN, 2018, p. 89)
A arte assim é apresentada não
apenas como contestação de uma ordem social absurda, mas, principalmente, como
denúncia da brutalidade das autoridades. A realidade brasileira presente permite
algum entendimento, por analogia, a respeito do que terá sido o contexto
ditatorial e militar no qual Katerina Gógou produziu sua obra. Essa
contextualização será importante para o desenvolvimento do meu trabalho de
pesquisa A construção do mito em Katerina Gógou.
Referência
BOULOS, Guilherme. Governo Caiado entra sem mandado e faz
ameaças de morte em acampamento do MTST em Goiânia. Instagram. 24 de fevereiro de 2019. Disponível em
https://www.instagram.com/p/BuQ6AHjAQfb/. Acessado em 24.fev.2019.
CLARKE,
Richard A. Bin Laden’s Dead. Al Qaeda’s Not. The New York Times. 02 de maio de 2011. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2011/05/03/opinion/03clarke.html?searchResultPosition=2.
Acessado em 26.maio.2019.
GÓGOU, Katerina. Nóstos [Repatriação]. In: ______. Tóra na doúme
eseís ti tha kánete: poiémata 1978-2002 [Agora veremos o que vocês vão fazer: poemas 1978-2002]. Atenas:
Edições Kastaniotis, 2013.
GÓGOU, Katerina. O mínas ton pagoménon estafilión. [O mês
das uvas geladas]. In: ______. Tóra na doúme eseís ti tha kánete:
poiémata 1978-2002 [Agora veremos o que
vocês vão fazer: poemas 1978-2002]. Atenas: Edições Kastaniotis, 2013.
GÓGOU, Katerina. Tóra
na doúme eseís ti tha kánete: poiémata 1978-2002 [Agora veremos o que vocês vão fazer: poemas 1978-2002]. Atenas:
Edições Kastaniotis, 2013.
HENRIQUE, Alfredo. Número de mortos em confrontos com
policiais sobe 48%. Folha de S. Paulo.
03 de abril de 2019. Disponível em
https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2019/04/numero-de-mortos-em-confrontos-com-policiais-sobe-48.shtml.
Acessado em 25.maio.2019.
JOCENIR; BROWN, Mano. Diário de um detento. In: RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
MAGRA,
Iliana. Greece’s Most-Wanted Terrorist Is Arrested in Athens Suburb. The New York Times. 05 de janeiro de 2017. Disponível em
http://www.nytimes.com/2017/01/05/world/europe/panagiota-roupa-arrested-athens.html?emc=edit_th_20170106&nl=todaysheadlines&nlid=72348413&_r=0.
Acessado em 05.jan.2017.
TRUFFI, Renan. Proposta de Bolsonaro, votação da ampliação
da lei antiterrorismo é adiada no Senado. O
Estado de S. Paulo. 31 de outubro de 2018. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,proposta-de-bolsonaro-votacao-da-ampliacao-da-lei-antiterrorismo-e-adiada-no-senado,70002576840.
Acessado em 10.jan.2019.