segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A Bíblia Latina

Este texto discute a Bíblia Sagrada em seu aspecto histórico e literário, especialmente no que diz respeito a sua tradução para o latim. É dada maior atenção ao Novo Testamento por ser um texto originalmente grego ― idioma ao qual este blog também se dedica.


Antigo e Novo Testamento

A Bíblia está dividida em vários grupos de livros, dois deles são o Antigo e o Novo Testamento. Esses livros possuem divisões internas: o Antigo Testamento apresenta o Pentateuco, que são os cinco primeiros livros (os judeus chamam-no Torá); os livros históricos; o livro da poesia hebraica (Salmos); os livros da sabedoria; o livro dos profetas, estes divididos em maiores e menores (pela quantidade de texto, não pela importância dos profetas); e, finalmente, os livros apócrifos, que fazem parte da tradição Católica e não são aceitos pelas denominações evangélicas. São livros apócrifos os de Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, e Macabeus I e II. O Novo Testamento, por sua vez, apresenta Evangelhos, Atos dos apóstolos, Epistolas e o Apocalipse.

O Antigo e o Novo Testamento apresentam uma grande diferença quanto à natureza de Deus. Essa diferença, mais do que qualquer coisa, atesta a mudança político-social de seu tempo. O filósofo Nietzsche, leitor voraz da Bíblia, afirma com precisão ser o Antigo Testamento um livro escrito em estilo tão grandioso que as literaturas grega e indiana nada têm para lhe pôr ao lado. Esse é o livro da justiça divina, no qual Deus expulsa o homem do paraíso, castiga o Egito com dez pragas, incendeia Sodoma e Gomorra, enfim, “Com horror e veneração nos colocamos face a esses enormes vestígios do que foi o homem uma vez” (NIETZSCHE, § 52, 1992, p. 57). Neste mesmo parágrafo o filósofo apresenta seu desprezo pelo Novo Testamento, já que esse é o livro da graça, o livro cujo ponto culminante é a crucificação de Deus, ou seja, algo totalmente oposto ao espírito dos deuses da antiguidade.

O que choca o filósofo é a união em um só livro de duas naturezas divinas tão distintas: o Jesus, Deus de amor e perdão e o Deus do Antigo Testamento, que não teme castigar duramente mesmo os seus mais diletos fiéis, como, por exemplo, proibindo a entrada de Moisés na terra prometida:

4 E disse-lhe o SENHOR: Esta é a terra que, sob juramento, prometi a Abraão, a Isaque e a Jacó, dizendo: à tua descendência a darei; eu te faço vê-la com os próprios olhos; porém, não irás para lá. 5 Assim, morreu ali Moisés, servo do SENHOR, na terra de Moabe, segundo a palavra do SENHOR.(Deuteronômio, 34. 4-5, conforme a Bíblia de Estudo de Genebra, 1999, p. 242; doravante BEG)

Esse mesmo espírito severo é encontrado nos deuses da antiguidade grega, por exemplo, na ação da deusa Atena, quando tortura moralmente o herói Ájax até que este cometa suicídio. A história de Ájax é contada por Sófocles em uma peça de teatro com o nome do herói. Na peça, Ájax está revoltado por não ser reconhecido como o melhor soldado, depois de Aquiles, a lutar na guerra de Troia. Quando Aquiles morre, suas armas são dadas a Odisseu, em reconhecimento pela atuação na guerra; e, por causa disso, Ájax planeja matar os companheiros. A deusa Atenas intervém e confunde o herói fazendo que ele ataque ovelhas. Enquanto o herói assim é ridicularizado, a deusa convida Odisseu a divertir-se com o ridículo da cena: Ájax ataca ovelhas acreditando estar matando, por vingança, seus colegas soldados. Odisseu, prudente, observa temeroso, pois sabe que, caso o humor da deusa mude, a próxima vítima pode ser ele. Um comportamento tão soberbo, capaz de tripudiar a miséria humana, não é possível ao Deus do Novo Testamento, pois Jesus é Deus de perdão e seu trabalho na terra foi ensinar a oferecer a outra face.


A Escrita do Novo Testamento

O Novo Testamento foi escrito em grego (com exceção do livro de Mateus, escrito em hebraico ou aramaico). Bassetto (2001, p. 125-6) ensina que a primeira comunidade cristã era constituída pelas classes mais baixas das grandes cidades e a língua grega dessa comunidade não era a mais culta, como, por exemplo, a utilizada por Plutarco ou Luciano, mas uma variedade proveniente da fusão de vários dialetos, dentre os quais predominava o ático.

O grego da Bíblia é conhecido como koiné (κοινή) e, quanto aos autores, Freire (2008, p. 255-6) explica que se distinguem pelo uso das palavras São Lucas e São Paulo. Também são obras de perfeição estilística a Epístola de São Paulo aos Hebreus e a Epístola de São Tiago. Por outro lado, as que mais se afastam da variedade culta são o Evangelho de São Marcos e os textos de São João, sobretudo o Apocalipse.

As epístolas (επιστολή, “carta”, em grego), fazem parte do processo de cristianização da Grécia. Não são poucas as cartas: dentre os vinte e sete livros do Novo Testamento vinte e um são cartas, o que atesta a importância deste gênero para o processo de cristianização da Grécia. As cartas eram escritas a igrejas individuais, a grupos de igrejas ou a pessoas específicas (BEG, 1999, p. 1314).

O nome dos livros são por vezes nomes de cidades gregas e algumas delas existem ainda hoje, como, por exemplo, Coríntios (Νομός Κορινθίας), que fica no Peloponeso, e Tessalônica (Νομός Θεσσαλονίκης), que fica na Macedônia Central ― não confundir com o país Macedônia, vizinho da Grécia. Obviamente, por serem cidades bíblicas, são importantes centros turísticos. Também vale mencionar que hoje a religião predominante na Grécia não é a Católica, sim a Ortodoxa (Ορθόδοξα).

Com o aumento da comunidade cristã no início do século I, a Bíblia teve que adaptar-se à língua da maioria, ou seja, ao Latim Vulgar. No século II foram feitas várias traduções da Bíblia para o latim e, devido ao cristianismo, termos hebraicos e gregos foram latinizados (anathema, angelus, apostata, apostolus, baptizo, entre muitos outros). Segundo Bassetto (2001, p. 125-6), devido ao surgimento de novos valores, vocábulos latinos foram redefinidos, assim peccare passa a significar “transgredir a lei de Deus”, não mais “tropeçar”; fides passa a significar “fé” religiosa, não mais “fidelidade”. Desse modo, o vocabulário é transformado em uma língua religiosa técnica, mas, no entanto, ainda vai demorar a surgir, na Idade Média, o Latim Eclesiástico dos chamados Padres da Igreja.

Como aponta Xavier (2010, p. 222), a diferença entre o latim cristão e o eclesiástico é social, sendo o latim cristão o dos autores cristãos e o eclesiástico um latim mais relacionado aos termos da teologia, bem como ao direito canônico e à história da liturgia.

Importante mencionar que o texto antigo era sempre manuscrito, cada uma das cópias era feita a mão. Nessa época, quem copia o texto era chamado copista (scriptor, em latim). Esses copistas, segundo Bassetto (2001, p. 45), embora estudassem para exercer o ofício, erravam em seu trabalho. Erravam por distração, cansaço, má leitura ou até mesmo por decisão própria. Autores como Cícero e Marcial referem-se a erros e defeitos de toda espécie em cópias de suas obras. Também as cópias da Bíblia apresentam incorreções.

As traduções da Bíblia para o latim são conhecidas como a Vetus Latina ou Ítala, a Afra e, finalmente, a Vulgata. A Vulgata, a mais conhecida por ser a utilizada pela igreja Católica, foi traduzida por S. Jerônimo, e, a respeito dessas traduções, diz Bassetto:

A Vetus Latina de fato abrange um conjunto de traduções anteriores a S. Jerônimo (348-420), entre as quais se destacam a Ítala, literalmente fiel ao texto grego, com muitos plebeísmos, e a Afra, literalmente melhor. A Vulgata, como é conhecida a tradução de S. Jerônimo, só em parte é uma nova tradução, pois mantém o caráter literal da Ítala, além de não ter modificado nada dos livros da Sabedoria, Eclesiastes, Baruc e Macabeus I e II; os Atos dos Apóstolos, o Apocalipse e as Epístolas foram apenas retocados (BASSETTO, 2001, 125-6).

O termo Vulgata está relacionado à intenção da igreja de tornar oficial essa tradução da Bíblia e, como afirma Xavier (2010, p. 227), não ao sentido de uma versão facilitada. “A Vulgata foi concebida com o intuito de ser uma tradução padrão das Escrituras Sagradas, e, por muito tempo, foi o texto utilizado nas traduções da Bíblia para as línguas românicas” (Xavier, 2010, p. 227). Essa Bíblia precisava tanto manter o vínculo com o latim popular quanto ser atraente aos cristãos de classes sociais mais privilegiadas.


Referência
BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos de Filologia Românica: história externa das línguas. São Paulo: EdUSP, 2001.

Bíblia de Estudo de Genebra: inclui introduções, notas de estudo, gráficos, mapas, índice para anotações e concordância. São Paulo e Barueri: Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

Catholic Bishops’ Conference of England and Wales. Biblia Sacra juxta Vulgatam Clementinam. Atualizada em 9 de janeiro de 2006. Disponivel em: < http://vulsearch.sourceforge.net/html/index.html > (acessada em 30 de janeiro de 2014).

FREIRE, Antônio. Gramática Grega. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

XAVIER, Mayara Nogueira. O Latim da Vulgata e de Outras Traduções Bíblicas em Língua Latina. Mayara Nogueira Xavier. Orientadora: Profa. Dra. Patricia Prata. Campinas: Língua, Literatura e Ensino, Outubro/2010 - Vol. V. Acessado em 21 de fevereiro de 2016, disponível em < http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/lle/issue/view/4/showToc >.


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