domingo, 6 de janeiro de 2019

Arte no Instagram: Ítalo Lima



Além do Ítalo Lima, pretendo apresentar outros artistas (ver Rodrigo Gallo) cuja produção, de inegável qualidade, pode resultar numa discussão mais aprofundada no futuro. 



Para quê, perguntou ele, para que servem 
Os poetas em tempo de indigência? 


Conheci esses versos por meio do livro A terceira miséria, da poetisa portuguesa Hélia Correia. Depois eu soube que ela os foi buscar em um poeta alemão chamado Friedrich Hölderlin. Fiquei curioso, mas nunca fui confirmar essa fonte. Fato é que estamos em crise e nossa indigência é cultural — professores e artistas agora são responsabilizados pela incompetência administrativa de governantes.

Houve uma outra época de crise em que poetas iam para as ruas entregar seus poemas mimeografados. Como explica Hollanda (2007) 
[n]os bares da moda, nas portas de teatro, nos lançamentos, livrinhos circulam e se esgotam com rapidez. Alguns são mimeografados, outros, em offset, mostram um trabalho gráfico sabido e diferenciado do que se vê no design industrializado das editoras comerciais (HOLLANDA, 2007, p. 9). 

Esses poetas eram chamados marginais por estarem à margem do mercado editorial. Falavam do que queriam e brincavam de fazer poesia. Dentre eles estavam Chacal, Ana Cristina Cesar, Torquato Neto... (ver a coletânea de Hollanda, 26 poetas hoje) Isso aconteceu pelos anos 1970, quando o Brasil queria libertar-se de mordaças, torturas e censuras. Cesar (2013), por meio da personagem Gil, vai atribuir a Shakespeare os versos “trepar é humano, chupar divino” (CÉSAR, 2013, p. 48). O poeta Charles vai escrever poemas como “Diário de bagos” 

quando você se abaixa pra pegar um disco 
com seu vestido curtinho 
delicioso 
aparece a calcinha no rego moreno da bunda 
curto muito 
meu olhar derrete de prazer 
não há como enganar a evidência 
desculpe o volume do lado esquerdo da calça sem cueca 
com tesão não se trinca 
antes todos entendessem e se dedicassem de corpo e 
cama 

obs.: meu pau esquecidamente duro 
cai no amolecimento 
(CHARLES, 2007, p. 232) 


Décadas depois, em 2018, constata-se que a liberdade sexual não foi alcançada. O que parecia ser uma conquista permanente de tudo o que promove a ascensão de grupos minoritários, de um momento para outro foi estrangulado por uma manipulação política travestida de moralismo. 

O sentimento de marginalidade retorna e, como descreve Matoso (1982), nos anos da poesia marginal 
[t]odo mundo fazia de tudo ao mesmo tempo. Ao contrário da última corrente de vanguarda (o poema-processo) e de seus antecedentes concretos fundamentais, a poesia marginal não apresenta qualquer homogeneidade, prática ou teórica. Não há um trabalho coletivo ou grupal orientado e posicionado contra ou a favor de determinados conceitos. Se existem traços comuns à maioria dos autores da década, são eles: a desorganização, a desorientação e a desinformação. E mais: a despreocupação com o próprio conceito de poesia e o descompromisso com qualquer diretriz estética resultaram numa espécie de displicência, de certo modo saudável, como se verá mais adiante, e, como consequência, tal conceito ou tais diretrizes podem ser indiferentemente observados ou não, consciente ou inconscientemente, na obra poética desses autores (MATTOSO, 1982, p. 29). 

Com esse mesmo espírito, surgem poetas que, por meio da Internet, fazem-se ouvir tanto quanto a turma do mimeógrafo dos anos setenta. Alguns, como o professor Azevedo Júnior, preferem o Facebook. Quando o governo, pressionado por grupos religiosos, tentou interferir com o ensino escolar, Azevedo Junior deixou seu protesto com rimas em tom de música rap

A classe média deu o aval 
E voltamos para era medieval 
Quando o conhecimento 
Incomoda os poderosos 
E que me desculpem os religiosos 
Mas ciência...é fundamental! 
(AZEVEDO JUNIOR, 2018)


O poeta Ítalo Lima, por sua vez, vai um pouco além e não só divulga seus poemas pelas páginas do Instagram (@italolimapoesias) como agora também distribui um livro de pouco mais de quarenta páginas no formato PDF.

Com atividade artística intensa que inclui a postagem de poemas, a promoção de saraus e de feiras e participação em palestras, Lima já lançou um livro no formato impresso e digital (Tem sempre uma esperança se prostituindo dentro da gente, editora Viseu, 2018) e agora, com poucos meses de intervalo e apenas no formato digital, O desinteresse começa quando o gozo termina, 2018 (clique no título para o download do PDF). Essa obra apresenta poemas como “Garganta profunda”, sempre de temática LGBT:

Meus pais nunca me ensinaram a fazer garganta profunda, nunca entendi ao certo o real motivo de ter passado tanto tempo sem saber abrigar na minha laringe um membro rígido. Tenho certeza que Deus criou gargantas para isso. O pau do Alberto foi o primeiro que em mim fez lar, foi um aprendizado lento e fundo. No início, ânsias de vômitos são normais, mas passado os exatos três minutos, tudo vira afago. A regra é simples: só cabe paus acima de dezoito centímetros. Nada abaixo disso. E Alberto tinha o tamanho exato que me fazia sorrir até amanhecer. Porque o bom da vida é sentir as coisas profundas do mundo.
(LIMA, 2018, p. 10)


Esses poemas de temática sexual, provocativos, ao revelarem o íntimo de um casal, fazem um protesto, inicialmente, à sociedade machista e homofóbica e, finalmente, a uma inusitada autoridade repressora que, uma vez no poder, quer transformar a prática sexual em questão de Estado mediante a imposição de um modelo familiar que, em qualquer análise, mostra ser apenas uma ficção de mal gosto. O poema “Eu me masturbo pensando em você” junta devoção e sexo:

Eu me masturbo pensando em você, 
e cubro todos os santos do altar do meu quarto, apago as velas, faço unguento de água benta e purifico as minhas mãos, rezo um terço de penitência e ajoelho nu frente ao espelho dos meus sonhos. aliso meu membro frouxo levemente com a mão direita, fecho os olhos instantaneamente e penso em toda desordem do teu corpo: imagino teus dedos brancos invadindo todos os orifícios do meu desencanto, você ri sem medo e eu apanho com a mão feroz teus cabelos com aleatórios fios brancos, eu sei, toquei em solo sagrado, teu cabelo único é vício proibido, apalpei então tua nuca firme no mesmo instante em que você sussurrou umidamente no meu ouvido surdo “eu não te amo mais”. Despertei sem arquitetura e vi um corpo em agonia frente ao espelho, não veio gozo flácido, nem umidez repleta de culpa, havia apenas suores imaturos e santos incomuns de costas pro vazio do meu abandono, minha punição maior será a ausência do teu sobrenome. com quantos ais se reza uma esperança? 
(LIMA, 2018, p. 17) 



Lima trabalha com ilustradores. O desinteresse começa quando o gozo termina conta com capa ilustrada por André Marques (@ndrmrqs). No Instagram, trabalha com Tai Melo (@nudegrafia_mirror), Álvaro Castro (@alvarocastrodesign), Lorenzo Dustkid Guagni (@thedustkid), Willian Vailant (@meupincelmolhado), dentre outros. Todos de temática sexual no limite do que é permitido pelo Instagram. Tai Melo explica que uma conta sua foi desativada devido ao conteúdo — ela, bem como os demais, continua provocativa, portanto, sugiro que a visita a esses sites não demore a ser feita. 


Referências bibliográficas

AZEVEDO JÚNIOR, Antônio. A classe média deu o aval. [São José do Rio Preto], [sine nomine], 5 de agosto de 2018. 

CESAR, Ana Cristina. Poética. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 

CHARLES. Diário de bagos. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). 26 poetas hoje. 6a ed. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007. 

CORREIA, Hélia. A terceira miséria. Lisboa: Relógio d’água, 2012. 

HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). 26 poetas hoje. 6a ed. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007. 

LIMA, Ítalo. O desinteresse começa quando o gozo termina. [Teresina], [sine nomine], 2018.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Série “Leiam direito a Bíblia” ou “Ateu ensina cristão” 2


Na “Parábola do homem louco”, aforismo 125 do livro A gaia ciência, por meio de um protagonista louco o filósofo Nietzsche faz a famosa afirmação de que “Deus está morto” (2001, p. 148). Apesar de sua aversão à vida religiosa, no aforismo 475, intitulado “O homem europeu e a destruição das nações”, ao fazer um balanço sobre o povo judeu (importante lembrar que Nietzsche era alemão e que esse aforismo está no livro Humano, demasiado humano, publicado originalmente em 1878; portanto, antes de Hitler e das guerras mundiais, mas sob um forte sentimento nacionalista alemão), o filósofo afirma que “devemos aos judeus o mais nobre dos homens” (2000, p. 258) — e coloca Cristo entre parênteses para que não deixar dúvidas aos leitores desavisados. Essa nobreza diz respeito tanto ao espírito quanto ao sangue. 

Jesus, o Cristo; Jesus, o filho de Davi; Jesus, o rei de Israel, são referências à nacionalidade, à origem, enfim... Ser filho de Davi significa linhagem nobre — Jesus era pobre e humilde, nasceu numa manjedoura, mas, como se diz, tinha sangue azul, pois era descendente do rei Davi. Por causa dessa descendência, poderia ser o rei de Israel e isso o destacava entre os demais líderes religiosos de sua época. Contudo, diante de Pilatos, no julgamento que o condenaria à cruz, Jesus afirma “[...] O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse entregue aos judeus; mas agora, o meu reino não é daqui” (João 8.36).

O reino de Jesus não é deste mundo, mesmo assim ele pertencia a uma das tribos de Israel e era cobrado como líder somente de Israel. O episódio que universaliza Jesus como o Deus de todos o que o procuram é relatado no evangelhos de Mateus (15.21-28) e de Marcos (7.24-30). Nesse episódio, uma mulher que o evangelho de Mateus apresenta como cananeia e o de Marcos como uma grega de origem sírio-fenícia, pedia que Jesus libertasse sua filha, que estava possuída por espíritos demoníacos. Jesus não podia atendê-la, porque ele era exclusivo do povo de Israel e, por causa disso, os apóstolos ficaram incomodados e pediram que Jesus a mandasse embora: “Despede-a, pois vem clamando atrás de nós” (Mateus 15.23). Jesus explica à mulher: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus 15.24). Como a mulher insistisse, Jesus passou-lhe uma descompostura: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos” (Mateus 15.26). Apesar de ofendida, a mulher insistiu mais uma vez: “Sim, Senhor, porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos” (Mateus 15.27). Comovido, Jesus concedeu o milagre a essa mulher estrangeira e, por causa de transgressões como essa, o povo judeu o entregou para que fosse crucificado e nunca o aceitou como Deus. 

Lembrando: os judeus não seguem o Novo Testamento, sim o Pentateuco ou Torá, que são os cinco primeiros livros da Bíblia, atribuídos a Moisés (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). 

Termino repetindo o que já disse no texto anterior: Jesus não tolerava sofrimento humano causado por leis imbecis.

Referência 

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Série “Leiam direito a Bíblia” ou “Ateu ensina cristão” 1



Ao longo de toda minha vida, ouvi bobagens ditas por evangélicos. Como agora os evangélicos estão poder, entendo ser necessário alertar ao menos os bem-intencionados — aqueles que querem um país melhor e que só votaram no Bolsonaro porque acreditaram e ainda acreditam em mudança —, de que foram vários os períodos históricos em que a Bíblia foi usada para manipulação política.

Pretendo postar algumas análises sérias de passagens bíblicas do Novo Testamento. “Séria”, no caso, significa uma análise apoiada no texto da Bíblia, não nos interesses desse ou daquele grupo político. Contudo, essa não é uma análise neutra — citando Bagno (2012, p. 14) “não existe produto humano que não se configure, consciente ou inconscientemente, como uma tomada de posição política inspirada por uma ou mais ideologias; o mito da ciência ‘neutra’ não tem mais lugar na era em que vivemos”. 

Muitas das atrocidades combatidas por Jesus e relatadas pela Bíblia não são exclusivas do Mundo Antigo, pois continuam existindo hoje. A lei que autoriza o apedrejamento de mulheres flagradas em adultério, por exemplo, ainda existe em algumas partes do mundo (histórias como essa podem ser encontradas nos relatos de Malala, a jovem paquistanesa que recebeu o prêmio Nobel da Paz por defender a alfabetização de mulheres. Ela narra sua atividade política no livro “Eu sou Malala”). 

A Bíblia relata a interferência de Jesus na condenação de uma mulher em João 8.1-11. Nessa passagem, “escribas e fariseus” procuravam uma justificativa para condenar Jesus; portanto, se ele impedisse o apedrejamento, condenaria a si próprio como um transgressor da lei de Moisés (Deuteronômio 22.22 — “Se um homem for achado deitado com uma mulher que tem marido, então, ambos morrerão, o homem que se deitou com a mulher e a mulher; assim eliminarás o mal de Israel”). A estratégia de Jesus foi fazer com que os acusadores, que também seriam os carrascos, agissem de acordo com a própria consciência (João 8.7 — “[...] Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”). 

Esse episódio é comumente citado para exemplificar a compaixão de Jesus, mas é preciso entender também a transgressão: Jesus não admite leis sem sentido ou punições desproporcionais. Diante de situações como essa (os evangelhos relatam algumas, que discutirei em outras análises), Jesus transgride, muda a lei e deixa a seus seguidores um exemplo de que é preciso agir com sensibilidade, especialmente quando estamos em posição privilegiada de autoridade.

Por causa de transgressões como essa, Jesus foi preso, julgado e condenado à morte por cruz. Como observa Aquati (2008, p. 72, em nota) esse era “o mais cruel e ultrajante meio de aplicação da pena de morte entre os romanos e estava normalmente reservada aos escravos. As faltas que implicavam tal condenação eram em geral a pirataria, o assassinato, o banditismo e a incitação à revolta”.


Referência 

AQUATI, Cláudio. Tradução e posfácio. In: PETRÔNIO. Satíricon. ______. São Paulo: Cosac Naify, 2008. 

BAGNO, Marcos. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

Buenos Aires: Facultad de Filosofía y Letras

  Fazia parte dos planos de passeios por Buenos Aires visitarmos uma universidade, mais especificamente, um curso de Letras. Isso porque sem...