domingo, 15 de julho de 2018

As personagens negras na literatura antiga

Começo esse texto explicando de qual “literatura antiga” estou falando: pretendo discutir o romance antigo produzido na Grécia e em Roma entre os séculos II e VI d.C. Segundo o pesquisador Jacyntho Lins Brandão, no texto “Qual romance?” (há um link no título que leva ao texto; para mais detalhes sobre essa publicação, veja as Referências abaixo), no período em que esses romances foram escritos, a Grécia estava sob o domínio de Roma, de modo que, a rigor, todos os romances são romanos. 

Bakhtin, no livro Questões de literatura e estética (veja as Referências) classifica como “romances de aventuras e provações” os que foram escritos em grego, são eles 1) Quéreas e Calírroe, de Cáriton de Afrodísias; 2) As Efesíacas ou Ântia e Habrócomes, de Xenofonte de Éfeso; 3) Leucipe e Clitofonte, de Aquiles Tácio; 4) Pastorais ou Dáfnis e Cloé, de Longo; 5) As Etiópicas ou Teágenes e Caricleia, de Heliodoro; e como “romances de aventuras e de costumes” os que foram escritos em latim, são eles 1) Satíricon, de Petrônio; e 2) O asno de ouro, de Apuleio. 

Essa lista de romances têm sido aumentada nos últimos anos devido à descoberta de novos textos; mas, para tratar da representação de personagens negras, basta os textos acima — na verdade, nem chegarei a discutir todos.

Quando se fala da cultura brasileira como greco-romana e judaico-cristã, entende-se que são características da cultura que recebemos dos colonizadores portugueses. A língua romana teve muita influência da língua e da cultura grega e, embora haja muitas outras línguas na formação do português, mesmo o de Portugal, a herança latina é muito forte. Da mesma forma, a religião católica é a predominante no Brasil. Mas a cultura greco-romana não é a única da Antiguidade — em literatura, dizemos que a cultura greco-romana é a do ciclo troiano, ou seja, a que conta as histórias relacionadas com a guerra de Troia. Ilíada e Odisseia, de Homero, Eneida, de Virgílio e toda uma produção teatral, poética e romanesca. O outro grande ciclo é o chamado ciclo arturiano, mais relacionado ao povo do norte da Europa (Grécia e Roma estão ao sul, banhados pelo mar Mediterrâneo), e conta a história do rei Artur, do mágico Merlin e tem uma mitologia muito diferente da do ciclo troiano.

O norte da Europa era povoado por vikings, anglos, germânicos e aí sim temos uma população de pele muito clara e cabelos loiros e ruivos. Nos países mediterrâneos, por outro lado, a constituição étnica não é essa e, diga-se de passagem, boa parte das histórias passam-se no norte da África. 

No romance Leucipe e Clitofonte, de Aquiles Tácio, o narrador Clitofonte, ao ser sequestrado no Egito, vai descrever os sequestradores como “não totalmente negros, como um indiano; mas, antes, como um detestável etíope” (ACHILLES TATIUS III.9.2 [1969, p. 155]). Esse romance, escrito no século II d.C., dá testemunho literário de um Egito negro.

Há uma disputa entre o herói do romance Dáfnis e Cloé, de Longo, e um seu rival, por um beijo da heroína. Vou transcrever o diálogo todo, o herói é Dáfnis, o rival é Dorcon, e Cloé é a heroína. Quem começa é Darcon: 

“Eu, ó rapariga, sou mais alto do que Dáfnis; sou um boiadeiro, e ele não passa de um cabreiro; valho mais do que ele, da mesma forma que os bois valem mais do que as cabras; sou branco como o leite e louro como a seara do trigo pronto para a ceifa, e fui alimentado por uma mãe, e não por um animal. Ele é miúdo, e sem barba, como uma mulher, e escuro como um lobo; pastoreia bodes, e cheira tão mal quanto eles, e é pobre demais para ter um cachorro. E se, como dizem, foi uma cabra que lhe deu leite, ele em nada difere de um cabrito.” 
Depois destas e outras palavras semelhantes de Dorcon, eis o que disse Dáfnis:
“Eu fui alimentado por uma cabra, como Zeus; guardo bodes que são maiores do que os bois dele; mas não tenho o odor deles, da mesma forma que Pã, o qual, porém, é um bode quase por inteiro. Contento-me com queijo, pão cozido no espeto e vinho claro, tudo o que possuem os camponeses ricos. Sou imberbe, mas como Dioniso; sou escuro, mas como o jacinto, e no entanto Dioniso vale mais do que os sátiros e o jacinto mais do que o lírio. Quanto a ele, é ruivo como a raposa, em seu queixo aponta uma barba de bode, e é branco como uma mulher da cidade; e se é a mim que irás beijar, tu beijarás minha boca, se é a ele, tu beijarás os pelos de seu queixo. Lembra-te, ó rapariga, que tu também tiveste um animal como ama de leite, e mesmo assim és bela” (LONGO I.16 [1990, p. 16-7]). 

Segundo a tradutora “o termo jacinto designa um grande número de plantas, entre elas a airela, que, provavelmente, é a aqui referida” (BOTTMANN, 1990, p. 101, em nota). Essa airela vai da cor vermelha até a preta. Vale dizer, Dáfnis venceu a disputa!

Esses dois textos descrevem de forma textual e inconteste, personagens negras. A Ilíada, de Homero, faz diferente, nela, devido à descrição de personagens brancas, loiras, de olhos azuis, como no trecho abaixo, deduzimos que, talvez, esses personagens sejam exceção no grupo.

Tudo isso lhe rodava no íntimo e, entretanto,
ia sacando da bainha o gládio enorme.
Então, do céu, Atena desce. Enviou-a Hera,
dos braços brancos, que ama os dois, por ambos vela.
Por trás segura-lhe os cabelos louros, só
visível para ele; ninguém mais a vê.
Espanta-se o Peleide; gira o corpo, e logo
dá com Palas Atena: olhos terríveis brilham!
Dirigindo-se à deusa diz palavras rápidas:
“Filha de Zeus tonante, portador do escudo,
por que vens? Assistir à audácia de Agamêmnon?
Pois declaro o que penso e hei de ver cumprido:
seu belicoso orgulho vai causar-lhe a morte”.
Brilho de olhos azuis, responde a deusa Atena:
“Descendo do alto céu, para acalmar-te a ira
(se acaso me obedeces), vim a mando de Hera,
deusa dos braços brancos, que por ambos vela.
Vamos, para essa briga! Deixa em paz a espada!
Insulta-o com palavras, sim, o quanto queiras.
Agora vou dizer-te o que se cumprirá:
um dia hão de pagar-te o triplo em dons esplêndidos
como preço da afronta. Acalma-te e obedece” (CAMPOS, 2003, p. 41-3 [HOMERO, Ilíada I.193-213]). 


Ao prestar atenção nas descrições de etnias feitas pela literatura antiga greco-romana, é possível constatar que há uma variedade muito maior que aquela representada pelo cinema. 





Referências 


ACHILLES TATIUS of Alexandria. The Adventures of Leucippe and Clitophon. Translated by S. Gaselee. London: Loeb Classical Library, 1969. 

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. Tradução de ANDRADE, Homero Freitas de; AUGUSTO Jr., Góes; BERNARDINI, Aurora Fornoni; NAZÁRIO, Helena Spryndis; PEREIRA Jr., José. São Paulo: Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho, Hucitec, [1920-30] 1990. 

BOTTMANN, Denise. Notas. In: LONGO. Dáfnis e Cloé. Tradução Denise Bottmann. Campinas, SP: Pontes, 1990. 

BRANDÃO, Jacyntho Lins. Qual romance? (entre antigos e modernos) In: Eutomia: revista de literatura e linguística, Vol. 1, nº 12. Recife: UFPE, Jul./Dez. 2013, p. 80-99. 

CAMPOS, Haroldo. Ilíada de Homero: vol. I. São Paulo: Arx, 2003. 

LONGO. Dáfnis e Cloé. Tradução Denise Bottmann. Campinas, SP: Pontes, 1990. 


terça-feira, 10 de julho de 2018

Malala no Brasil

Apresentar Malala é fácil: é a garota que defendeu o direito à educação e, por isso, foi baleada pelo Talibã. Mas não é só isso, depois ela recebeu um Nobel — agora planeja vir ao Brasil.

O livro que conta a história dela é o Eu sou Malala. (YOUSAFZAI, Malala; LAMB, Christina. Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibã. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.)















Malala encontra garotas indígenas em trajes tradicionais.


Abaixo está a notícia que recebi e também o link para quem quiser fazer uma doação. Ela está sempre pedindo doações — o Fundo Malala vive de doações —, e a mensagem é dirigida ao mundo, não somente ao Brasil. A tradução é minha.



Malala está trazendo sua luta pela educação de garotas à América do Sul. Nesse ano ela vai passar seu aniversário no Brasil — uma nação com uma das maiores economias e mais de 1,5 milhão de meninas fora da escola. Racismo, pobreza e violência impedem que as garotas atinjam todo seu potencial. 

Malala is bringing her fight for girls’ education to South America. This year she is spending her birthday in Brazil — a nation with one of the world’s largest economies and more than 1.5 million girls out of school. Racism, poverty and violence prevent girls across the country from reaching their full potential. 

“Ao crescer, constantemente lhe dizem que você não pode. Você não pode porque você é negra ou porque é pobre ou porque nasceu numa bairro violento”, diz Dondara, uma estudante negra do Rio de Janeiro. A pobreza força muitas meninas a deixarem a escola e a entrarem no mundo do tráfico ou da exploração sexual.

“Growing up, you’re constantly told you can’t. You can’t because you’re black or poor or born in a dangerous neighborhood,” says Dondara, an Afro-Brazilian student from Rio de Janeiro. Poverty forces many girls out of school and into drug-related crime or sex trafficking. 

Para Rebeca, 16, a constante ameaça de tiroteio na favela faz com que seja difícil para ela ir à escola em segurança. Muitas de suas amigas já desistiram — e Rebeca não tem certeza se ela pode continuar correndo o risco.

For 16-year-old Rebeca, the constant threat of shoot-outs in her favela makes it difficult for her to get to school safely. Many of her friends have already dropped out — and Rebeca isn’t sure she can continue taking the risk. 

Durante sua viagem, Malala encontrará meninas como Dondara e Rebeca para aprender sobre os obstáculos que elas encontram e os recursos de que precisam para melhorar o acesso à educação para meninas em suas comunidades.

During her trip, Malala is meeting girls like Dondara and Rebeca to learn about the obstacles they face and the resources they need to improve access to education for girls in their communities. 

Com sua ajuda, podemos devolver às meninas o que o racismo, a pobreza e a violência tentaram tirar. Doe ao Fundo Malala hoje para ajudar todas as meninas a alcançarem seu potencial pleno. 

With your support, we can give back to girls what racism, poverty and violence tried to take away. Donate to Malala Fund today to help every girl reach her full potential. 

Agradecemos por amizades como a sua, 
Grupo Fundo Malala 

We’re grateful for friends like you, 
Malala Fund Team




sexta-feira, 6 de julho de 2018

Aprendendo a voar

Escrevi esse texto em 1999. Sobre vencer e perder, mas também, quem sabe, um pouco de autoajuda a mim mesmo! Essa ajuda, no caso, seria alguma coisa que eu gostaria de ouvir ou saber de mim mesmo depois que toda a energia do final da adolescência se tivesse esgotado — quando eu ficasse velho, portanto. 

Um amigo, com o qual eu discutia meus textos na época, recomendou-me ler Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. Ele viu alguma semelhança temática. Eu, no entanto, ainda não fiz essa leitura... Segue abaixo o texto. 





Quando eu ficava sozinho, olhava para o céu e me esticava todo na ponta dos pés, depois encarava o horizonte: queria voar até lá. Faz tempo... Mas, conhecia minha condição — sempre fui de grandes altitudes! 

Não olhava para baixo; baixo era um lugar que não existia. Eu tinha certeza de que só me era necessário um pouco mais de tempo. Sim, pois tinha muita coragem! Mas, apesar dessa coragem, quando abria as asas e encarava o horizonte ficava estarrecido. 

Uma questão de tempo, só isso... 

O tempo passava devagar, em desacordo com a minha ansiedade. Meus olhos viam longe e de longe eu queria olhar a montanha, mais do que de longe: de cima, — já era maior que ela naqueles dias. Eu abria as asas quando o vento soprava forte, sentia-me leve, depois continha o passo.

Num daqueles dias, uma força dentro fez-se presente, fiquei mais leve, e, finalmente, mostrei à montanha que eu era sim capaz! 

Foi a primeira vez, o primeiro voo. Fiz segredo daquele primeiro breve passeio, mas logo tomei gosto, encontrei meus pares e, na distância, a montanha ficou mediocremente minúscula. 

Sou forte por natureza e sempre conheci minha condição. Visitei outras montanhas e, além das montanhas, campos em planícies sem fim. Lutei o que era preciso lutar e sempre, sempre soube retornar. 

Hoje a montanha principia ser maior do que eu novamente, que me canso ao ir tão alto. Mas, como disse, sempre conheci minha condição. Ainda abro as asas quando o vento sopra forte, sinto-me leve... — e, a montanha sabe que foi vencida.

Buenos Aires: Facultad de Filosofía y Letras

  Fazia parte dos planos de passeios por Buenos Aires visitarmos uma universidade, mais especificamente, um curso de Letras. Isso porque sem...