quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A militância política de Katerina Gógou


Semelhanças entre o terrorismo anarquista grego e a ameaça de criminalização dos movimentos sociais brasileiros


Comunicação apresentada em 05 de junho de 2019, no “VII Congresso Nacional do PPG-Letras e XX Seminário de Estudos Literários: Políticas da literatura”, que neste ano comemorou os 40 anos do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, Câmpus São José do Rio Preto.


Nicolas Pelicioni de Oliveira: Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, Câmpus de São José do Rio Preto, na linha de pesquisa “Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura”, com o projeto “A construção do mito em Katerina Gógou: a biografia como elemento de interferência na recepção da obra literária”


Comunicação


Com o projeto “A construção do mito em Katerina Gógou: a biografia como elemento de interferência na recepção da obra literária” pretendo mostrar como o autor empírico pode interferir no entendimento que se tem de sua obra ao ficcionalizar informações de sua história pessoal.

A peculiaridade de Katerina Gógou, no que diz respeito a essa ficcionalização, é sua proximidade e até mesmo militância junto a grupos de extrema esquerda. São grupos anarquistas, mais de um, e, o mais famoso talvez tenha sido o “Organização Revolucionária 17 de Novembro” (Επαναστατική Οργάνωση 17 Νοέμβρη). Como de tempos em tempos o grupo muda de nome, atualmente é conhecido como “Luta revolucionária” (Επαναστατικός Αγώνας). Essa militância é mencionada insistentemente na obra poética da autora.

Recentemente, em janeiro de 2017, aconteceu a prisão de uma das lideranças do grupo “Luta revolucionária”, Panagiota Roupa, conhecida como Póla. A prisão dessa líder teve repercussão internacional, sendo noticiada, por exemplo, pelo jornal norte-americano The New York Times com a manchete “A mais procurada terrorista grega é presa nos subúrbios de Atenas” (Greece’s Most-Wanted Terrorist Is Arrested in Athens Suburb, 05.jan.2017). De fato, o termo “terrorista” é também encontrado na poesia de Katerina Gógou; contudo, o termo “terrorista” parece merecer nova interpretação. A exemplo da proposta de lei sugerida no Brasil pelo então candidato à presidência, Jair Bolsonaro (“Proposta de Bolsonaro, votação da ampliação da lei antiterrorismo é adiada no Senado”, Estadão, 31.out.2018), que poderia criminalizar movimentos sociais, abre uma série de possibilidades interpretativas a respeito do que terá sido o “terrorismo” em relação a Katerina Gógou.

Observo que esse grupo anarquista, “Luta revolucionária”, está de fato envolvido em conflitos com a polícia e realmente pratica atos de vandalismo. É muito provável que tenha sido ação desse grupo a invasão e pichação da embaixada brasileira em Atenas, no dia 20 de fevereiro de 2019, em protesto contra a postura machista, homofóbica e racista do presidente Jair Bolsonaro, como afirma o jornal Cruzeiro do Sul, do dia 25 de maio de 2019. Esse tipo de ação assemelha-se às praticadas por Katerina Gógou. Quanto à acusação de terrorismo, a poeta manifesta-se no livro O mês das uvas geladas (1988) nos seguintes termos:

Terrorismo: Domínio por meio daviolência. Terror.E terrorista quer dizer o quê?Não quero a resposta dos que o inventaram.Peço a resposta dos sem fôlego.

A persona poética não se importa com os inventores da palavra “terrorismo”, que são aqueles que a acusam, mas com aqueles que se mobilizaram por não terem opção ou por já estarem “sem fôlego”. Nesse caso, os terroristas são os que sofrem algum tipo de opressão social.

É muito significativa essa mudança do termo “manifestantes” para “terroristas”, pois as mudanças quanto ao entendimento jurídico que se passará a fazer de grupos constituídos por minorias sociais pode não apenas intensificar a opressão como também justificar o uso de violência. Vale mencionar que o terrorismo atual passou a ser entendido como muito mais belicoso após o ataque ao World Trade Center, nos Estados Unidos. Ainda no governo progressista de Barack Obama, o terrorista Osama Bin Laden pôde ser sumariamente executado numa ação criticada dentro e fora dos Estados Unidos. Apesar da brutalidade do assassinato, o jornalista Clarke escreveu no jornal The New York Times que,

[o]s Estados Unidos precisavam eliminar Osama Bin Laden para satisfazer um clamor por justiça e, em menor medida, encerrar o mito de sua invencibilidade. Mas jogar o corpo de Bin Laden no mar não encerra a ameaça terrorista, tampouco acaba com a motivação dos apoiadores do Al Qaeda (02.maio.2011).[1]

O ataque terrorista do dia 11 de setembro de 2001 fez despertar o que há de pior na belicosidade dos Estados Unidos e, mais do que isso, parece ter autorizado toda uma prática de tortura e execuções que, aparentemente, vinham sendo abandonadas. Dado o caráter hegemônico da economia norte-americana, as práticas que lá são produzidas acabam por influenciar práticas ao redor do mundo. Muito provavelmente, em seus dias, Katerina Gógou, como terrorista, não correria os mesmos riscos daqueles que são acusados de terrorismo depois do ano de 2001.

A política armamentista do governo Bolsonaro, que, durante a campanha, demonstrava ser favorável à execução sumária, como atestam um grande número de entrevistas com o então candidato à presidência; agora, mesmo antes de ter implantado os seus projetos — dentre eles é exemplo a lei anticrime proposta pelo ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro —, a intenção já faz aumentar não só os casos de agressividade como também os números da violência policial, como atesta o levantamento do jornalista Alfredo Henrique para a Folha de S. Paulo. Segundo o jornalista, as mortes provocadas por policiais em serviço foram 48% maior no mês de março de 2019, que somam 64 suspeitos mortos, em relação ao mesmo mês do ano anterior, 43 mortos.

No dia 24 de fevereiro de 2019, Guilherme Boulos, professor, coordenador do Movimento Trabalhadores Sem Teto (MTST) e da Frente Povo Sem Medo, que foi candidato à Presidência da República pelo PSOL em 2018, denunciou por meio de redes sociais a agressão e a ameaça de morte que sofreu o líder do MTST Goiás, que, ao perguntar ao policial se havia um mandato teve como resposta a exibição de um fuzil e a ameaça: “Aqui está o meu mandato. Fala alguma coisa de novo”. Como explica Boulos:

Não é a primeira ameaça que sofremos, mas não tenho dúvidas de que a postura e os atos do presidente Jair Bolsonaro, todos no sentido de criminalizar os movimentos sociais, são lidos como uma carta branca para a truculência do Estado (24.fev.2019)

Em procedimento que faz lembrar Manuel Bandeira em “Poema tirado de uma notícia de jornal”, Katerina Gógou registra, sob a interrogação “Mas não há Estado?”, que é um de seus poucos poemas que recebem título, a invasão de um domicílio. No poema seguinte, sem título, ambos do livro Repatriação, publicado postumamente (2004), registra a ação policial que resultou na morte do adolescente Michael Kaltézas (1970-1985), entre outros três manifestantes adultos.


MAS NÃO HÁ ESTADO?[2] A Tribuna de Domingo[3] 11.9.1978  REVISTA DO DOMICÍLIO PARA INVESTIGAÇÃO E DETENÇÃO, INSPEÇÃO E CONFISCO O título anuncia um final previsível. EM ATENAS, HOJE, 11º DIA DO MÊS DE JULHO DO ANO DE 1978, TERÇA-FEIRA, ÀS 4h que eu deite um cobertor sobre mim e em toda parte, nas janelas. Um que pernoita é presa de seus vizinhos traíras. Um poeta que escreve é uma criança muito muito pequena, tem febre durante a noite. Age e vive automaticamente, é ignorante da lógica do perigo. Imagina o seu próprio combatente como acusador das injustiças cometidas por todo lado. Por isso sente frio. VIEMOS PARA O CUMPRIMENTO DA REVISTA DO DOMICÍLIO E CAPTURA DO PROCURADO, COM ESCOLTA DE FORÇA POLICIAL, TENDO INFORMAÇÕES SEGURAS DE QUE O PROCURADO ESCONDE-SE EM SUA RESIDÊNCIA. ENTRAMOS NO PRÉDIO COM USO DAS CHAVES. OS HOMENS DAS FORÇAS ARMADAS TOMARAM O CONDOMÍNIO PELOS DOIS LADOS DA ESCADARIA…

Os elementos narrados em primeira pessoa na obra poética de Katerina Gógou estão próximos de sua história pessoal, contudo, ela é muito consciente de não estar escrevendo uma biografia e, muito sem cerimônia, a persona poética que fala leva o leitor a enganos. No poema que se segue ao “Mas não há estado?” são apresentados nominalmente as vítimas de um ataque policial; a saber: Kassímis, Tsirónis, Tsoutsouvís, Kaltézas, Prékas. Informações como essas, insistentemente colocadas em literatura, prestam-se, por um lado, a induzir o leitor a uma leitura biografista; por outro, de fato a registrar um momento histórico.

Para encerrar esta comunicação, lembro que, no Brasil, estão entre os acontecimentos brutais recentes a comemoração que o governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), fez do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Esse ato de afronta coloca as forças institucionais em estado de guerra, aparentemente, contra seus próprios cidadãos. Por vezes, é a arte que faz a denúncia das atrocidades de forma mais contundente. Por exemplo, em situação análoga à de Katerina Gógou, o grupo de RAP Racionais MC’s denunciou o massacre do Carandiru, em 1992, apontando nominalmente o responsável:

Ratatatá, Fleury e sua gangueVão nadar numa piscina de sangueMas quem vai acreditar no meu depoimento?Dia 3 de outubro, diário de um detento(JOCENIR; BROWN, 2018, p. 89)

A arte assim é apresentada não apenas como contestação de uma ordem social absurda, mas, principalmente, como denúncia da brutalidade das autoridades. A realidade brasileira presente permite algum entendimento, por analogia, a respeito do que terá sido o contexto ditatorial e militar no qual Katerina Gógou produziu sua obra. Essa contextualização será importante para o desenvolvimento do meu trabalho de pesquisa A construção do mito em Katerina Gógou.

Referência

BOULOS, Guilherme. Governo Caiado entra sem mandado e faz ameaças de morte em acampamento do MTST em Goiânia. Instagram. 24 de fevereiro de 2019. Disponível em https://www.instagram.com/p/BuQ6AHjAQfb/. Acessado em 24.fev.2019.

CLARKE, Richard A. Bin Laden’s Dead. Al Qaeda’s Not. The New York Times. 02 de maio de 2011. Disponível em: https://www.nytimes.com/2011/05/03/opinion/03clarke.html?searchResultPosition=2. Acessado em 26.maio.2019.

GÓGOU, Katerina. Nóstos [Repatriação]. In: ______. Tóra na doúme eseís ti tha kánete: poiémata 1978-2002 [Agora veremos o que vocês vão fazer: poemas 1978-2002]. Atenas: Edições Kastaniotis, 2013.

GÓGOU, Katerina. O mínas ton pagoménon estafilión. [O mês das uvas geladas]. In: ______. Tóra na doúme eseís ti tha kánete: poiémata 1978-2002 [Agora veremos o que vocês vão fazer: poemas 1978-2002]. Atenas: Edições Kastaniotis, 2013.

GÓGOU, Katerina. Tóra na doúme eseís ti tha kánete: poiémata 1978-2002 [Agora veremos o que vocês vão fazer: poemas 1978-2002]. Atenas: Edições Kastaniotis, 2013.

HENRIQUE, Alfredo. Número de mortos em confrontos com policiais sobe 48%. Folha de S. Paulo. 03 de abril de 2019. Disponível em https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2019/04/numero-de-mortos-em-confrontos-com-policiais-sobe-48.shtml. Acessado em 25.maio.2019.

JOCENIR; BROWN, Mano. Diário de um detento. In: RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

MAGRA, Iliana. Greece’s Most-Wanted Terrorist Is Arrested in Athens Suburb. The New York Times. 05 de janeiro de 2017. Disponível em http://www.nytimes.com/2017/01/05/world/europe/panagiota-roupa-arrested-athens.html?emc=edit_th_20170106&nl=todaysheadlines&nlid=72348413&_r=0. Acessado em 05.jan.2017.

TRUFFI, Renan. Proposta de Bolsonaro, votação da ampliação da lei antiterrorismo é adiada no Senado. O Estado de S. Paulo. 31 de outubro de 2018. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,proposta-de-bolsonaro-votacao-da-ampliacao-da-lei-antiterrorismo-e-adiada-no-senado,70002576840. Acessado em 10.jan.2019.





[1] The United States needed to eliminate Osama bin Laden to fulfill our sense of justice and, to a lesser extent, to end the myth of his invincibility. But dropping Bin Laden’s corpse in the sea does not end the terrorist threat, nor does it remove the ideological motivation of Al Qaeda’s supporters.
[2] Tradução minha e de Anthee Bezioula.
[3] Το βήμα της Κυριακής, título de um jornal ainda hoje em circulação.

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