domingo, 21 de maio de 2017

Exercício em prosa

Vilfredo (lenda do Reno, Grandmougin) é um poema de Olavo Bilac. Dividido em quatro partes, sempre com versos decassílabos, a primeira, “O Castelo”, é composta de quatro estrofes; a segunda, “As fadas da lagoa” composta de cinco estrofes; a terceira, “O remorso” composta de sete estrofes; e, por fim, a quarta parte, “O castigo”, é composta por cinco estrofes.

Apesar do rigor métrico, o texto pode ser posto em prosa! Uma professora, não por acaso poetisa, chamou à atenção essa incerteza ou oscilação entre prosa e poesia de certos textos poéticos, por meio de uma reflexão de Agamben:

É um fato sobre o qual nunca se refletirá o suficiente que nenhuma definição do verso é perfeitamente satisfatória, exceto aquela que assegura a sua identidade em relação à prosa através da possibilidade do enjambement. Nem a quantidade, nem o ritmo, nem o número de sílabas – todos eles elementos que podem também ocorrer na prosa – fornecem, deste ponto de vista, uma distinção suficiente: mas é, sem mais, poesia aquele discurso em que é possível opor um limite métrico a um limite sintático (todo verso em que o enjambement não está efetivamente presente será então um verso com enjambement zero), e prosa aquele discurso no qual isso não é possível (AGAMBEN, 2012).

Abaixo estão postos em parágrafos os versos decassílabos de Olavo Bilac. As únicas alterações dizem respeito a algumas iniciais de versos em maiúsculas que foram postas em minúsculas.

Vilfredo (lenda do Reno, Grandmougin)

O castelo.

Sobre os rochedos, longe, o castelo aparece, dominando a extensão das florestas sombrias. A tarde cai. O vento abranda. O ar escurece. E Vilfredo caminha entre as neblinas frias. Vai vê-la... E estuga o passo. Alto e silencioso, abre o castelo, em fogo, os vitrais das janelas. Nas ameias, manchando o céu caliginoso, aprumam-se perfis de imóveis sentinelas.

Vilfredo vai ouvir a voz da sua Dama... Mas, no seu coração perturbado, parece que vive, em vez do amor, essa ligeira chama, que arde apenas um dia, arde e desaparece... E o arruinado solar, refletido no Reno, sobre o qual paira e pesa um sonho sobre-humano, sobe, entre os astros, só, furando o céu sereno, com a calma e o esplendor de um velho soberano.

As fadas da lagoa.

Vilfredo conheceu o amor nos braços d’Ela... Teve-a nua, a tremer, nos braços, nua e fria! Teve-a nos braços, louca, apaixonada e bela! Mas parte, alucinado, antes que aponte o dia... É que uma outra paixão o descuidado peito lhe entrou. Paixão cruel, loucura que o atordoa, desde o momento em que, formosas, sobre o leito das águas calmas, viu as fadas da lagoa.

Parte... À margem fatal da lagoa das fadas chega, e em êxtase fica, a riba em flor mirando. Um ligeiro rumor de vozes abafadas aumenta... E exsurge da água o apaixonado bando. Corre Vilfredo, em febre, a apertá-las ao seio, e despreza o passado e esquece o juramento: beija-as, e, na expansão do carinhoso anseio, imola toda a vida aos beijos de um momento. Para os seus corpos ter, toda a alma lhes entrega: e, na alucinação do gozo em que se inflama, por esse amor, por essa embriaguez renega o Deus dos seus avós, o amor da sua Dama...

O remorso.

Delira. Mas, depois do delírio sublime, o remorso, imortal, nasce com o arrebol. E ele mede a extensão do seu monstruoso crime, e esconde a face à luz vingadora do sol. Busca assustado a paz, busca chorando o olvido... À volúpia infernal o coração vendeu, e o inferno lhe reclama o coração vendido, cobrando em sangue e pranto o gozo que lhe deu.

Quer rezar, quer voltar ao seu fervor primeiro, quer nas lajes, de rojo, abominando o mal, ser de novo Cristão, Fiel e Cavaleiro: Mas não encontra paz na paz da catedral. Pobre! até no palor das faces maceradas das monjas, cuida ver as faces que beijou; ah! seios de marfim! ah! bocas perfumadas! Recordação cruel de um Éden que acabou! Parte só, sem destino, errando, a passo incerto, por montes e rechãs, no inverno e no verão, e por anos sem conta habitando o deserto, sem lágrimas no olhar, sem fé no coração.

Das florestas sem fim sob a abóbada escura ouve, nos alcantis de em torno, a água rolar; sobre ele, a longa voz das árvores murmura, e o vendaval retorce os ramos negros no ar. Mas à fera, ao inseto, ao limo verde, ao vento, ao sol, ao rio, ao vale, à rocha, à serpe, à flor é em vão que Vilfredo implora o esquecimento do seu amor cruel, do seu horrendo amor...

O castigo.

Volta... Nem luta já contra o crime que o atrai. Velho e trôpego vem, mendigo esfarrapado, e exânime, por fim, num calefrio, cai sem consciência, ao pé das águas do Pecado. Calma. A noite caiu. Nem um pássaro voa. Não piam no silêncio as aves agoireiras. Mas palpitam, luzindo, à beira da lagoa, fogos-fátuos subtis sobre as ervas rasteiras.

E, então, Vilfredo vê, presa de um medo do denso turbilhão dos fogos repentinos, com tentações no olhar e convites na voz surgirem turbilhões de corpos femininos. E o Inferno pela voz dos fogos-fátuos fala! Vilfredo foge. O horror vai com ele, inclemente! Foge. E corre, e vacila, e tropeça, e resvala, e levanta-se, e foge alucinadamente... Em vão! pesa sobre ele um destino fatal: E o louco, em todo o horror dos campos tenebrosos, vê fechar-se e prendê-lo a cadeia infernal da infernal multidão dos Elfos amorosos...


Referências

AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução, prefácio e notas: João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. E-Pub.

BILAC, Olavo. Poesias. Introdução, organização e fixação de texto Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Buenos Aires: Facultad de Filosofía y Letras

  Fazia parte dos planos de passeios por Buenos Aires visitarmos uma universidade, mais especificamente, um curso de Letras. Isso porque sem...