quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Algumas palavras sobre Gramática I

Texto para discussão na aula de Gramática do Cursinho Popular Carolina Maria de Jesus, no dia 23 de fevereiro de 2019.

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Gramática: o que é e para que serve 


É muito fácil acreditar que para escrever bem é preciso saber gramática. Essa ideia, como veremos mais adiante, está bastante errada. Quanto à abordagem, segundo a professora Hauy (2014, p. 67-68), “[d]ependendo do enfoque adotado, dos métodos de estudo e de exposição desses fatos, e, principalmente, do objetivo que se propõe o autor”, a gramática pode ser descritiva, histórica, comparativa ou normativa. 

  • A descritiva estuda o mecanismo pelo qual uma dada língua, num dado momento, funciona; 
  • A histórica estuda a origem e evolução de determinado sistema linguístico; 
  • A comparativa estuda as diferenças e semelhanças entre várias línguas; 
  • A normativa é a descritiva aplicada como regra aos falantes de uma determinada língua. 

A gramática que se leva para a escola é a normativa, é a que diz aos alunos como eles devem escrever ou falar isso e aquilo. Essa gramática será montada a partir de alguns exemplos; assim, uma escrita bonita, que servirá de modelo, será retirada ora de grandes escritores, ora da classe dominante — uma vez que a classe dominante escolhe quais serão os grandes escritores (isso não é uma verdade inteira, mas essa questão será melhor discutida em um outro texto sobre literatura) e, como a sociedade, de modo geral, deseja ser classe dominante, parece justo que essa classe seja imitada no modo de falar, escrever, agir. Há consequências...

Escrever bem 

O texto abaixo, que será analisado em suas informações a respeito do que será construir uma voz, foi extraído de Lispector (2009, p. 175, grifos meus). 

A deseroização é o grande fracasso de uma vida. Nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair — só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz. Minhas civilizações eram necessárias para que eu subisse a ponto de ter de onde descer. É exatamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a possível linguagem. Só então minha natureza é aceita, aceita com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. 

A nossa fala é um artifício, um artificial, uma arte. É preciso trabalho para que se alcance uma comunicação eficiente. Lispector (2009) está falando de despersonalização, deseroização, fracasso, mudez. Segundo a autora, só perde a voz quem construiu uma voz, ou seja, quem criou uma maneira própria de se comunicar. Nem todos fracassam, só os que realmente se empenharam, e nem todos perdem a voz, só os que chegaram a construir uma.



De volta à gramática 


A gramática é uma maneira de pensar a língua. Pode-se estudar a fonética, que são os sons da língua; a morfologia, que são os processos pelos quais as palavras se formam (a ortografia, maneira correta de escrever as palavras, é uma parte da morfologia); a sintaxe, que é, grosso modo, a relação que uma palavra tem com a outra; e a semântica, que é o sentido de uma frase num dado contexto. 



A fonética estuda desde a unidade do som até o texto. A parte escrita, sobre a qual devo me deter neste texto, pela ordem que foi posta, vai da menor (a palavra), para a maior (o texto) — morfologia, sintaxe, semântica. 



Estudar gramática significa dedicar-se a um entendimento a respeito de como a língua funciona — só isso. Não se aprende poesia estudando gramática e não se aprende prosa estudando gramática. Cazuza, uma vez confessou: “Tenho dom de escrever, mas sou nulo em ortografia. O meu cópi é o Ezequiel Neves. Uma vez eu quis rimar ‘não me importam que mil raios me partam’ e o Zeca quase morreu quando ouviu” (1990, p. 27). 


A classe não-dominante 

Como já se pode imaginar, todas as ocorrências linguísticas que não fazem parte da fala e da escrita da classe dominante serão estigmatizadas. Todo falante, sem exceção, tem sotaque. Como o Brasil é um país desigual, o sotaque de algumas regiões são estigmatizados e, o de outras, privilegiados. A fala de pessoas de baixa escolaridade é estigmatizada. Além disso, como aponta o linguista Bagno (2009, p. 19), a língua portuguesa tem alguns mitos: 
  • “os brasileiros falam mal o português, estropiam a língua de Camões, que só os portugueses sabem falar direito, porque são os donos da língua”; 
  • “o português é uma das línguas mais difíceis do mundo”; 
  • “só se pode admitir como certo o uso dos grandes escritores e das pessoas letradas”; 
  • “a língua escrita é a forma certa da língua, porque tem lógica, enquanto a língua falada é caótica e desregrada”; 
  • “o que não está nas gramáticas nem nos dicionários não existe, não é português”; 
  • “as pessoas sem instrução, das classes pobres urbanas ou da zona rural, cometem muitos erros ao falar a língua”; 
  • “os jovens só usam gíria e têm um vocabulário pobre” etc. 
Dentre os mitos apresentados por Bagno (2009), deixarei para uma reflexão a respeito do mito da língua pura, ou seja, aquele de que só os portugueses falam bem o português, um trecho da entrevista que Guimarães Rosa concedeu ao alemão Lorenz: 

LORENZ: Não seria mais fácil e mais correto se agora conversássemos um pouco sobre o aspecto puramente filosófico, sobre as diferenças entre o português europeu e o brasileiro, sobre as conclusões que você tirou disso? Acho que assim seria mais fácil de entender isso que você chama de aspecto metafísico.
GUIMARÃES ROSA: Bem, sim, você tem razão. Temos de partir do fato de que nosso português‐brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa. E além tudo, tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está saturado. Ainda é uma língua jenseits Von Gut und Böse,[1] e apesar disso, já é incalculável o enriquecimento do português no Brasil, por razões etnológicas e antropológicas.
LORENZ: Pelo processo de mistura com elementos indígenas e negroides com os quais se fundiu no Brasil...
GUIMARÃES ROSA: Exato, este foi um enriquecimento imenso e já pode ser notado no exterior pela quantidade de diferentes dicionários europeus e americanos do mesmo idioma. Naturalmente, tudo isto está a nossa disposição, mas não à disposição dos portugueses. Eu, como brasileiro, tenho uma escala de expressões mais vasta que os portugueses, obrigados a pensar utilizando uma língua já saturada.
(LOREZ, 1991, p. 80-81) 

Ou seja, para Guimarães Rosa, a mistura de línguas que ocorreu e ocorre no Brasil é um fator de enriquecimento.


Referências


BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim!: em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola editorial, 2009. 



CAZUZA. Biografia. In. CHEDIAK, Almir. Cazuza. vol. I. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1990. 



HAUY, Amini Boainain. Gramática da língua portuguesa padrão: com comentário e exemplário – redigida conforme o novo acordo ortográfico. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. 

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 

LORENZ, Günter W. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.




[1] Além do Bem e do Mal, título de um livro fundamental de Nietzsche. Citado em alemão por Guimarães Rosa

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