quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Doença dos hipocôndrios

Esse texto não é dos mais antigos. Escrito no ano 2000, surgiu como uma tentativa de crônica e narrava um medo que eu vinha tendo de ficar doente. A personagem não tinha nome e também não era feminina ─ isso é coisa da reescrita que fiz agora. Acho que personagens com nome têm mais proximidade com o ficcional e a mudança de gênero parece facilitar o distanciamento do real, leva a ficção adiante e a diferencia da crônica.




Eram seis horas da manhã quando ela encarou a si mesma no espelho do banheiro. Notou alguns fios de cabelos brancos e disse baixinho, pronunciando seu nome completo:

─ Lizania Eduarda Fontes, você está ficando velha...

Repetiu o nome mentalmente lembrando de uma época da infância em que não gostava do nome Lizania, nem de Eduarda e era indiferente ao nome Fontes, herança deixada pelo pai.

Logo depois, sentiu doer o dente. Não é bem certo que doeu, na véspera ela quebrara um caroço de azeitona ao comer um pastel e ficou toda preocupada. Foi ao dentista.

Fazia um bom tempo que não ia ao dentista e talvez houvesse bastante cáries ─ coisa que justificaria o hálito estranho que havia percebido há algum tempo.

Não havia cáries. Fora feita apenas a limpeza e a aplicação de flúor. O mau hálito deve ter sido impressão ou talvez o estômago, algo em resposta à má alimentação e ao excesso de café.

Reparou que o intestino não funciona regularmente e, para piorar, a cor da urina não lhe parece normal. Considerou que, se continuar como está, logo terá úlceras no estômago e grandes pedras nos rins.

Foi ao médico certa de estar sendo acometida pela degeneração própria da idade. Mas não havia úlceras nem pedras... como pode ter tanta saúde se sente tanto cansaço com as atividades corriqueiras do dia a dia?

Tem certeza de que o convívio com fumantes lhe deve ter rendido um enfisema pulmonar ou qualquer outro dano causado pelo hábito tabagista alheio.

É uma fumante passiva e pode estar na iminência de um infarto cardíaco! A dor de cabeça, que sente esporadicamente, deve ser consequência de má circulação sanguínea no cérebro.

Afastou-se de amigas e amigos fumantes e procurou um cardiologista. O coração está lindo, disse o médico, mas a dor de cabeça é certamente um tumor, pensou consigo. Um tumor?

A dor não é aguda, contudo, vem notando que também não é esporádica. Tem-na percebido quase todos os dias. Voltou ao consultório perguntando a si mesma se os exames ou o próprio médico são confiáveis.

Um médico tão atencioso e seguro terá realmente tanta competência quanto aparenta? Ficou gripada e teve febre, por esse motivo faltou do trabalho por alguns dias.

O sol brilhou com a mesma intensidade o mês inteiro, pensava. Nada há que justifique uma gripe. Talvez estivesse confundindo os sintomas com os da dengue... Foi ao posto de saúde mais próximo.

Onde pode ter contraído a doença? Não era dengue, apenas gripe. No entanto, tem certeza de que há mais do que gripe. Possivelmente algum mal ainda não conhecido.

Sarou antes de procurar o médico, mas sabe que sobraram sequelas que estarão com ela pelo resto de sua vida. Ou talvez esteja exagerando; talvez esteja ficando louca...

Qual a diferença entre psicologia e psiquiatria? Não soube nem procurou saber, voltou à rotina que tinha antes da dor de dente ─ casa-trabalho, trabalho-casa ─, e reabilitou os amigos fumantes.

Dois meses depois foi atropelada por um ônibus escolar no fim da tarde. Houve alvoroço na esquina. Crianças gritando, trânsito congestionado.

Ela foi acordar em uma cama de hospital e não deixou que médicos a examinassem para procurar fraturas. Levantou-se e foi embora aborrecida.

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