sábado, 5 de janeiro de 2019

Série “Leiam direito a Bíblia” ou “Ateu ensina cristão” 2


Na “Parábola do homem louco”, aforismo 125 do livro A gaia ciência, por meio de um protagonista louco o filósofo Nietzsche faz a famosa afirmação de que “Deus está morto” (2001, p. 148). Apesar de sua aversão à vida religiosa, no aforismo 475, intitulado “O homem europeu e a destruição das nações”, ao fazer um balanço sobre o povo judeu (importante lembrar que Nietzsche era alemão e que esse aforismo está no livro Humano, demasiado humano, publicado originalmente em 1878; portanto, antes de Hitler e das guerras mundiais, mas sob um forte sentimento nacionalista alemão), o filósofo afirma que “devemos aos judeus o mais nobre dos homens” (2000, p. 258) — e coloca Cristo entre parênteses para que não deixar dúvidas aos leitores desavisados. Essa nobreza diz respeito tanto ao espírito quanto ao sangue. 

Jesus, o Cristo; Jesus, o filho de Davi; Jesus, o rei de Israel, são referências à nacionalidade, à origem, enfim... Ser filho de Davi significa linhagem nobre — Jesus era pobre e humilde, nasceu numa manjedoura, mas, como se diz, tinha sangue azul, pois era descendente do rei Davi. Por causa dessa descendência, poderia ser o rei de Israel e isso o destacava entre os demais líderes religiosos de sua época. Contudo, diante de Pilatos, no julgamento que o condenaria à cruz, Jesus afirma “[...] O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse entregue aos judeus; mas agora, o meu reino não é daqui” (João 8.36).

O reino de Jesus não é deste mundo, mesmo assim ele pertencia a uma das tribos de Israel e era cobrado como líder somente de Israel. O episódio que universaliza Jesus como o Deus de todos o que o procuram é relatado no evangelhos de Mateus (15.21-28) e de Marcos (7.24-30). Nesse episódio, uma mulher que o evangelho de Mateus apresenta como cananeia e o de Marcos como uma grega de origem sírio-fenícia, pedia que Jesus libertasse sua filha, que estava possuída por espíritos demoníacos. Jesus não podia atendê-la, porque ele era exclusivo do povo de Israel e, por causa disso, os apóstolos ficaram incomodados e pediram que Jesus a mandasse embora: “Despede-a, pois vem clamando atrás de nós” (Mateus 15.23). Jesus explica à mulher: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus 15.24). Como a mulher insistisse, Jesus passou-lhe uma descompostura: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos” (Mateus 15.26). Apesar de ofendida, a mulher insistiu mais uma vez: “Sim, Senhor, porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos” (Mateus 15.27). Comovido, Jesus concedeu o milagre a essa mulher estrangeira e, por causa de transgressões como essa, o povo judeu o entregou para que fosse crucificado e nunca o aceitou como Deus. 

Lembrando: os judeus não seguem o Novo Testamento, sim o Pentateuco ou Torá, que são os cinco primeiros livros da Bíblia, atribuídos a Moisés (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). 

Termino repetindo o que já disse no texto anterior: Jesus não tolerava sofrimento humano causado por leis imbecis.

Referência 

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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