Texto para discussão na aula de Gramática do Cursinho Popular Carolina Maria de Jesus, no dia 10 de março de 2019.
Gramática: o que é e para que serve
Variação linguística
Já foi motivo de polêmica o livro didático Por uma vida melhor, destinado à Educação de Jovens e Adultos (EJA), assim como a questão 31 do ENEM 2018, que discutia o pajubá. Como dito na aula 1, a norma gramatical que se leva aos alunos é a da classe dominante, portanto, antes de continuar, vamos ler a crítica que o professor Bagno (2009) faz respeito disso:
◦ a prioridade absoluta, no ensino de língua, deve ser dada às práticas de letramento, isto é, às práticas que possibilitem ao aprendiz uma plena inserção na cultura letrada, de modo que ele seja capaz de ler e de escrever textos dos mais diferentes gêneros que circulam na sociedade. Para ler e escrever, por mais óbvio que pareça, é preciso ler e escrever, e não, como sempre se acreditou, decorar toda uma nomenclatura gramatical numerosa, confusa e frequentemente contraditória, nem fazer análise sintática e morfológica de frases soltas, artificiais, irrelevantes, muitas vezes ridículas, práticas que não contribuem em nada com a verdadeira educação linguística dos cidadãos — com isso, o ensino explícito da gramática, como objeto de reflexão e teorização, deve ser abandonado nas primeiras etapas da escolarização em favor de uma real inserção dos aprendizes na cultura letrada em que vivem; ◦ todos os aprendizes devem ter acesso às variedades linguísticas urbanas de prestigio, não porque sejam as únicas formas “certas” de falar e de escrever, mas porque constituem, junto com outros bens sociais, um direito do cidadão, de modo que ele possa se inserir plenamente na vida urbana contemporânea, ter acesso aos bens culturais mais valorizados e dispor dos mesmos recursos de expressão verbal (oral e escrita) dos membros das elites socioculturais e socioeconômicas; o acesso e a incorporação dessas variedades urbanas de prestigio se fazem pelas práticas de letramento mencionadas acima, por meio do convívio intenso, sobretudo no ambiente escolar, com os gêneros textuais mais relevantes para a interação social nos modos de vida contemporâneos; ◦ é imprescindível reconhecer que essas variedades urbanas de prestígio não correspondem integralmente às formas prescritas pelas gramáticas normativas, isto é, não correspondem à norma padrão tradicional: uma grande quantidade de regras prescritas pela norma-padrão tradicional já caíram na obsolescência, já deixaram de ser seguidas até mesmo pelos escritores mais consagrados nos últimos cem anos (se não mais), assim como muitos usos não normativos já se incorporaram plenamente na língua falada das camadas sociais privilegiadas e na língua escrita nos gêneros textuais mais prestigiados — com isso, embora o acesso do estudante à norma-padrão tradicional também faça parte da sua educação linguística (sobretudo pela e para a leitura dos clássicos), este acesso deve ser feito numa perspectiva crítica, para que não se caia na velha prática (anti)pedagógica de condenar todas as inovações linguísticas (resultantes dos inevitáveis processos de mudança das línguas) como se fossem indícios da “ruína” e da “decadência” do idioma; ◦ é passada a hora de se produzir uma nova gramática de referência do português brasileiro contemporâneo que venha a substituir as gramáticas normativas que ainda circulam no mercado, eivadas de inconsistências teóricas e de contradições metodológicas, inspiradas em postulados não científicos e em preconceitos sociais, cristalizados antes do início da era cristã; uma nova gramática que descreva e autorize o que já está pacificamente incorporado à atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos qualificados de “cultos”; constitui um atentado aos direitos do cidadão continuar a prescrever, como únicas corretas, regras gramaticais que entram em flagrante conflito com a intuição linguística do falante e que não correspondem ao estado atual da língua, nem sequer em seus usos escritos mais formais; ◦ a prática da reflexão linguística é importante para a formação intelectual do cidadão; com isso, ainda existe lugar, em sala de aula, para o estudo explícito da gramática, desde que ele não seja visto como um fim em si mesmo nem como o aprendizado de um conjunto de dogmas, de verdades absolutas e imutáveis: a reflexão sobre a língua deve ser feita por meio da investigação de fatos linguísticos reais, em manifestações faladas e escritas autênticas, e por meio do confronto crítico entre as abordagens tradicionais e as teorias científicas mais recentes — se a prática da pesquisa, da reflexão sobre a constituição histórica dos campos de conhecimento, da contestação e revisão dos postulados científicos ocorre em todas as demais disciplinas do currículo escolar, não existe justificativa alguma para que ela não ocorra também nas aulas de língua: se os professores de ciências não podem mais ensinar que Plutão é um “planeta”, por que os professores de português devem continuar a ensinar que você é mero “pronome de tratamento”, que existe uma “flexão de grau” ou que o verbo preferir não admite construções comparativas do tipo “prefiro mil vezes cinema do que teatro”? ◦ a variação linguística tem que ser objeto e objetivo do ensino de língua: uma educação linguística voltada para a construção da cidadania numa sociedade verdadeiramente democrática não pode desconsiderar que os modos de falar dos diferentes grupos sociais constituem elementos fundamentais da identidade cultural da comunidade e dos indivíduos particulares, e que denegrir ou condenar uma variedade linguística equivale a denegrir e a condenar os seres humanos que a falam, como se fossem incapazes, deficientes ou menos inteligentes — é preciso mostrar, em sala de aula e fora dela, que a língua varia tanto quanto a sociedade varia, que existem muitas maneiras de dizer a mesma coisa e que todas correspondem a usos diferenciados e eficazes dos recursos que o idioma oferece a seus falantes; também é preciso evitar a prática distorcida de apresentar a variação como se ela existisse apenas nos meios rurais ou menos escolarizados, como se também não houvesse variação (e mudança) linguística entre os falantes urbanos, socialmente prestigiados e altamente escolarizados, inclusive nos gêneros escritos mais monitorados (BAGNO, 2009, 38-40).
Formação dos idiomas
As línguas europeias modernas tiveram início por volta do ano 1000 d.C. No processo de mudança, as línguas se transformaram; o inglês, por exemplo, que era uma língua casual (casos gramaticais) e dispunha de três gêneros (masculino, feminino e neutro), foi bastante simplificado.
Curiosidade: a forma thou era a segunda pessoa do singular em inglês e you, a do plural. Para imitar a formalidade de idiomas como o português (Portugal), o francês, o italiano, o espanhol e o alemão, o inglês começou a usar a forma plural you e, com o passar do tempo, a forma singular acabou perdida.
O que são línguas casuais?
Os casos gramaticais dizem respeito a um sistema complexo de concordância. Vamos comparar, por exemplo, a declinação de um adjetivo inglês com um português e um latino.
1.
Masculino
|
Feminino
|
|
Singular
|
beautiful
|
beautiful
|
Plural
|
beautiful
|
beautiful
|
2.
Masculino
|
Feminino
|
|
Singular
|
bonito
|
bonita
|
Plural
|
bonitos
|
bonitas
|
3.
masculino
|
feminino
|
neutro
|
||||
Sg.
|
Pl.
|
Sg.
|
Pl.
|
Sg.
|
Pl.
|
|
Nom
|
Pulcher
|
Pulchri
|
Pulchra
|
Pulchrae
|
Pulchrum
|
Pulchra
|
Ac
|
Pulchrum
|
Pulchros
|
Pulchram
|
Pulchras
|
Pulchrum
|
Pulchra
|
Ab
|
Pulchro
|
Pulchris
|
Pulchra
|
Pulchris
|
Pulchro
|
Pulchris
|
Dat
|
Pulchro
|
Pulchris
|
Pulchrae
|
Pulchris
|
Pulchro
|
Pulchris
|
Gen
|
Pulchri
|
Pulchrorum
|
Pulchrae
|
Pulchrarum
|
Pulchri
|
Pulchrorum
|
Voc
|
Pulchre
|
Pulchri
|
Pulchra
|
Pulchrae
|
Pulchrum
|
Pulchra
|
Há línguas modernas que utilizam o sistema casual, por exemplo, entre outras, o alemão e o grego.
As línguas mudam
Esses exemplos foram extraídos de Bagno (2006).1. Rotacização do L nos encontros consonantais
Creusa, Cráudia, grobo, pranta, ingrês, broco, mas igreja, praia, frouxo, escravo
Latim
|
Francês
|
Espanhol
|
Português
|
ecclesia
|
église
|
iglesia
|
igreja
|
plaga (litus)
|
plage
|
playa
|
praia
|
fluxus
|
flou
|
flojo
|
frouxo
|
—
|
esclave
|
sclavo
|
escravo
|
2. Eliminação das marcas de plural redundantes
Quero te dar as lindas flores amarelas que brotaram no meu jardim.3. Transformação de LH em I
Português
|
Francês
|
Português (variante)
|
abelha
|
abeille
|
abêia
|
alho
|
ail
|
ai
|
batalha
|
bataille
|
bataia
|
colher (substantivo)
|
cuiller
|
cuié
|
falha
|
faille
|
faia
|
filha
|
fille
|
fia
|
palha
|
paille
|
paia
|
trabalhar
|
travailler
|
trabaiá
|
tégula > teg’la > tegla > teyla > telha > têia
4. Simplificação das conjugações verbais
Verbo amar
|
Francês
|
|
Eu amo
|
Eu amo
|
J’aime
|
Tu amas
|
Você ama
|
Tu aimes
|
Ele ama
|
Ele ama
|
Il aime
|
Nós amamos
|
A gente ama
|
Nous aimons
|
Vós amais
|
Vocês ama
|
Vous aimez
|
Eles amam
|
Eles ama
|
Ils aiment
|
5. Transformação de -ND- em -N-
— Tá veno aquele carro, se quis é, eu vendo!
Na sentença acima, qual a diferença, além do “d”, entre “veno” e “vendo”, formas do verbo “ver” e do verbo “vender”?
6. Redução do ditongo OU em O
outro
|
ôtro
|
trouxe
|
trôxe
|
encostou
|
encostô
|
7. Redução do ditongo EI em E
beiço
|
beiço
|
brasileiro
|
brasilêro
|
deixa
|
dêxa
|
||
beijo
|
bêjo
|
cheiro
|
chêro
|
jeito
|
jeito
|
||
leigo
|
leigo
|
primeiro
|
primêro
|
queijo
|
quêjo
|
||
peito
|
peito
|
queixo
|
quêxo
|
seiva
|
seiva
|
8. Redução de E e O átonos pretônicos
Notem o “i” e o “u” tônicos:e-i > i - i (bebida > bibida) | o - i > u - i (formiga > furmiga)
e - u > i - u (segundo > sigundo) | o - u > u - u (coruja > curuja)
E > I
alegria, avenida, bebida, Benedito, feliz, ferido, freguesia, medida, mentira, metido, pedido, pepino, periquito, preguiça, seguido, Severinocabeludo, pendura, segunda, seguro, veludo
O > U
assobio, chovia, comida, cozinha, corria, domingo, dormir, folia, formiga, gorila, harmonia, notícia, podia, possível, Sofiacoruja, costume, costura, fortuna, gordura
Outro caso, o B e o M
boato, bocado, bodega, bolacha, boneca, borracha, botão, botecomocambo, moeda, moela, molambo, moleque, moqueca, morango, mostarda
9. Contração das proparoxítonas em paroxítonas
árvore
|
>
|
arvre
|
música
|
>
|
musga
|
|
córrego
|
>
|
corgo
|
pássaro
|
>
|
passo
|
|
cubículo
|
>
|
cuvico
|
sábado
|
>
|
sabo
|
|
fósforo
|
>
|
fósfro
|
tábua
|
>
|
tauba
|
|
glândula
|
>
|
landra
|
víbora
|
>
|
briba
|
|
glândula
|
>
|
landra
|
sábado
|
>
|
sabo
|
|
música
|
>
|
musga
|
tábua
|
>
|
tauba
|
|
pássaro
|
>
|
passo
|
víbora
|
>
|
briba
|
O latim e o português
Latim
|
Português
|
Latim
|
Português
|
|
ÁSINUS
|
ASNO
|
MIRÁCULUM
|
MILAGRE
|
|
BÁRBARUS
|
BRAVO
|
ÓPERA
|
OBRA
|
|
CÁLIDUS
|
CALDO
|
HÚMERUS
|
OMBRO
|
|
CUNÍCULUS
|
COELHO
|
PARÁBOLA
|
PALAVRA
|
|
CÓMPUTUS
|
CONTO
|
PERÍCULUM
|
PERIGO
|
|
DÍGITUS
|
DEDO
|
PÁUPER
|
POBRE
|
|
SPÉCULUM
|
ESPELHO
|
PÓPULUS
|
POVO
|
|
FÁBULA
|
FALA
|
QUADRAGÉSIMA
|
QUARESMA
|
|
FRÍGIDUS
|
FRIO
|
RÉGULA
|
REGRA
|
|
GÉNERUM (ac)
|
GENRO
|
SÓCERA
|
SOGRA
|
|
ÍNSULA
|
ILHA
|
TÉGULA
|
TELHA
|
|
HÓMINEM (ac)
|
HOMEM
|
TÉNEBRA
|
TREVA
|
|
LÍTTERA
|
LETRA
|
VÉTULU
|
VELHO
|
|
MÁCULA
|
MALHA
|
VÍRIDE
|
VERDE
|
Conclusão
Há muitos outros casos a serem analisados. O livro A língua de Eulália, de onde foram tirados esses exemplos apresenta vários outros. O importante é saber que todas as línguas, em qualquer época, apresentam formas variantes e estão em constante processo transformação. As mudanças que acontecem não são obra do acaso, nem da preguiça do falante, muito menos de alguma desinteligência. Tudo tem seu motivo e a gramática é um instrumento para o estudo desses fenômenos.
Referência
BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim!: em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola editorial, 2009.
BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 15 ed. São Paulo: Contexto, 2006.
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