domingo, 31 de março de 2019

Sobre comemorar 1964











Nasci em 1973, numa cidade interiorana e assim, por estar longe dos grandes centros, imagina-se que também pudesse estar longe da violência da ditadura. Contudo, apesar da distância, talvez porque meu pai fosse sindicalista, petista ligado à CUT — do tipo que ajudou muitos trabalhadores a se aposentarem —, minhas lembranças de infância incluem vivências ou experiências daquela situação política tão restritiva.

No fim dos anos 70, Lula começava a despontar como uma liderança, Chico Buarque já era um artista consagrado, nós sabíamos o que era o militarismo e, principalmente, sabíamos que a violência ficava impune. Meu pai tinha medo de que a violência daqueles dias nos alcançasse porque, devido à sua atividade sindical, de vez em quando ele recebia ameaças de morte.

Há um episódio desses dias de infância que juntou a peste que eu era com o momento de política esquisita que vivíamos.

Um dia, o museu de Mirassol recebeu uma exposição de telefones. Não me lembro se eu e meus colegas chegamos a essa exposição espontaneamente ou se foi alguma professora que nos levou até lá. Em todo caso, para sabermos como era usar um telefone antigo — isso foi muito antes do celular —, um deles estava ligado à rede. Fizemos uma fila e cada um faria uma ligação para onde quisesse. Não tive dúvida: passaria um trote em alguém! Telefonei para minha própria casa e, sem me identificar, disse que ia matar todo mundo!

Eu devia ter onze ou doze anos e meu pai devia ter alguns anos a menos do que tenho hoje. Com onze anos a gente entende alguma coisa, mas sem a profundidade que as situações exigem. Imediatamente depois de passar o trote, entendi o tamanho da besteira que tinha feito. Peguei minha bicicleta e pedalei para casa — justamente a bicicleta e a facilidade de ir para casa faz com que a visita ao museu pareça não ter sido um acontecimento ligado à escola!

A brincadeira aconteceu durante o dia e quem atendeu o telefonema foi meu pai. Ao chegar em casa, ele estava assustado e o telefone fora do gancho. Ainda assim, a brincadeira ficou de graça! Talvez pelo alívio de saber que foi só um trote, não teve chinelada, nem castigo, nem nada!

Havia medo, uma suspeita no ar e não era só em casa. Todo mundo sabia ou ao menos desconfiava, pois sempre há incautos, que as leis, a polícia e, consequentemente, a justiça não eram confiáveis. Mais tarde, a Constituição de 1988 veio para amenizar o problema.

Fico imaginando o que eu teria para conversar com meu pai hoje. Quando ele morreu, minha participação em atividades políticas ainda era pequena. No final das contas, ainda que não tenha sido minha intenção, o trabalho intelectual que faço agora vai muito de encontro justamente ao que ele gostaria que eu fizesse. Se ele estivesse aqui, é possível que neste domingo estivéssemos nos perguntando se um dia o Brasil vai romper com esse projeto de país do futuro e passar a ter um presente.

Não há nada o que comemorar.


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