quarta-feira, 11 de abril de 2018

O caso da semente

Esse texto foi escrito em 1999. Minha intenção era a de escrever um conto ou um causo nos moldes do “Para aprender as moda”, postado aqui neste blog.

Agora me lembro que a inspiração para esse conto foi um poema da Cora Coralina, o Caminho do morro. Isso foi em uma época em que eu não me preocupava em anotar referência bibliográfica, por esse motivo, caso queiram baixar o PDF com o conto da Coralina, a única coisa que o texto dela apresenta é o nome da autora; a divisão em estrofes e algum vocabulário em notas, não constam no original, são coisas minhas.

Vamos ao caso da semente.

I.

Um amigo africano, do Togo, trouxe-me como presente, dentro de um envelope de depósito do Banco do Brasil, uma semente de não-sei-o-quê. Uma sementona grande, toda seca. Entregou-me o envelope rindo ─ eu devia saber que tinha alguma coisa errada: aquela cara de malandro, o envelope do Banco do Brasil... Assim que meu amigo se despediu, joguei com desprezo a semente fora. Joguei pela janela e nem vi onde caiu. Sei que a sem-vergonha brotou. Quem diria? Uma arvorezinha muito bonita cresceu enfiando suas raízes na parede de minha casa, escalou a casa até o teto procurando pelo sol, finalmente, cresceu sobre o telhado.

Meus vizinhos elogiavam a beleza da planta. Fiquei orgulhoso, pois era a minha arvorezinha! Tudo aconteceu vagabundamente: nunca reguei ou adubei, nunca preocupei-me com podas, apenas deixei que ela crescesse sobre a casa. A arvorezinha enfeitava minha propriedade sem me dar trabalho.

O tronco estava enorme e forte, bem junto à parede. Então, veio a chuva, a árvore floriu e, depois de florir, deu fruto. Um fruto seco e esturricado que os vizinhos todos buscavam para tirar a semente e plantar. A procura era tanta que resolvi vendê-los, cheguei mesmo a fazer algum dinheiro. Em menos de um ano toda a vizinhança tinha a tal da arvorezinha cobrindo os telhados. Sobraram algumas sementes no meu quintal, que brotaram por ali mesmo e agarram-se em todos os meus muros.

Novas chuvas vieram e então eu descobri que a maldita planta esburacou meu telhado. Choveu sobre meus livros, sobre meus móveis e sobre meu carpete. Foi preciso providenciar a remoção da planta. Vieram homens com serras, machados, escadas e muita vontade de trabalhar, mas tiveram de esperar o sol secar os muros e telhados para poderem escalar a casa. Enquanto aqueles bons homens esperavam, o tronco da árvore engrossou e trincou minha parede.

Veio o sol e evaporou toda a umidade. Os homens iniciaram o trabalho: subiram e desceram escadas, bateram machados e serraram que serraram. Depois de alguns dias nessa lida, alguém gritou “madeira”. Uns correram para cá, outros correram para lá e a árvore veio ao chão. Junto com a árvore, foram ao chão meu telhado e a parede que estava junto ao tronco. Êta serviço porco! Xinguei que xinguei, mas de nada adiantou: tive de pagar o trabalho dos homens. Logo eles se foram com suas escadas, serras e machados. Dormi sem teto, ao relento, envolto pelas paredes que sobraram.

Tirei uma semana de folga para limpar a porcaria. Cortei a árvore em pedaços bem pequenos e joguei sobre o caminhão que os levou a um destino ignorado. Reconstruí a parede e o teto depois de remover o resto do tronco até a raiz. Removi todas as mudas remanescentes no meu quintal, que já começavam a escalar os muros que ainda estavam de pé. Demorou seis meses para que tudo voltasse ao normal na minha casa.

II.

Agora preciso contar dos meus queridos vizinhos, pois cada um deles tinha a mesma arvorezinha linda que destruiu minha casa subindo por seus próprios telhados. Os telhados estavam todos verdinhos e, depois de florirem, deram aquele mesmo fruto seco e esturricado que eu conheci em meu próprio quintal. As raízes racharam as calçadas deles, houve infiltração de água da chuva e, então, finalmente, alguém teve a brilhante ideia de responsabilizar-me pelo caos que assolava o bairro.

Tirei uma semana de folga para visitar esse e visitar aquele amigo. Contemplei os telhados da cidade e reuni alguns engenheiros para com eles fazer alguns orçamentos. Nunca em minha vida vi tantos números juntos, a situação era tão grave que o prefeito acabou intervindo.

O bairro reuniu-se em mutirão: homens, mulheres e crianças, cada um carregando sua escada, sua serra e seu machado. Todo mundo com muita vontade de trabalhar e eu liderava tudo com o auxílio de engenheiros. O governo do estado mandou tratores, operários e mais engenheiros à cidade. Tristemente, antes que os tratores começassem a funcionar, eis que chegam à cidade ambientalistas vindos de toda parte, dizendo que as árvores eram de espécie rara e não poderiam ser cortadas.

Aí o caso se avolumou. Enquanto nossas competentes autoridades decidiam o que fazer, e demoraram meses para decidir alguma coisa, a cidade foi invadida bichos que nunca vi em livros, o lugar ficou parecendo uma floresta e minha casa era o único ponto, mais ou menos desmatado, capaz de lembrar que aquele bairro um dia foi parte urbana da cidade.

Até tentamos passar por cima das decisões dos ambientalistas e derrubar tudo, mais logo vieram novas chuvas e uma nova florada. A partir daí não havia mais o que fazer. O engraçado é que, quando alguém queria conversar com o responsável pela bagunça, sempre aparecia alguém para dizer meu nome.

Algumas das famílias mudaram-se para perto, outras para longe. O Governo transformou o lugar em uma reserva destinada a pesquisas e minha casa tornou-se abrigo de cientistas.

Durante os acontecimentos, houve até quem sugerisse levar-me para a cadeia. Felizmente, também fiquei sem casa, o que significa sem meu escritório e sem minha biblioteca e sem cadeia!

Restou-me contar o causo do bairro que virou floresta. Para os incrédulos que riem de minha história trago na mala uma porção de sementes ressecadas, é só plantar!


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